“Não é um cidadão quem não está disposto a respeitar as leis e obedecer ao magistrado civil; e certamente não é um bom cidadão quem não deseja promover, por todos os meios sob seu poder, o bem estar de toda a sociedade e de seus concidadãos” (Adam Smith).
De acordo com o estágio civilizatório de cada sociedade, a responsabilidade civil é chamada a exercitar uma ou várias funções. Infelizmente, o Brasil é vítima do monopólio da função compensatória da obrigação de indenizar. O ordenamento só é chamado a intervir diante do evento patológico de um dano patrimonial ou moral. Nesse momento, o Judiciário se presta ao papel de transferir os danos do ofendido ao ofensor, conduzindo a vítima à situação jurídica mais próxima ao momento imediatamente anterior à lesão pela “restitutio in integro”.
Aos poucos, a doutrina brasileira se abre para outras relevantes funções da responsabilidade civil. Fala-se de uma ‘função punitiva’, cujo objetivo é o de sancionar o autor do ilícito pela imposição de uma pena civil face à extrema reprovabilidade de seu comportamento ou desprezo pela sorte da vítima, independentemente da extensão dos danos. Cogita-se, mais recentemente, de uma ‘função precaucional’, visando impedir a prática ou a reiteração de comportamentos antijurídicos, evitando-se a ocorrência de danos que ofendam interesses transindividuais. Mesmo que um dia possamos estabelecer uma harmoniosa convivência entre as funções compensatória, punitiva e precaucional, o fato é que a responsabilidade civil continuará a desempenhar um papel de desestímulo a comportamentos antissociais ou atividades que imponham riscos anormais a uma coletividade. O receio de uma sanção negativa impele o ser humano a adotar condutas cautelosas no sentido de não violar a esfera econômica ou existencial de um terceiro. Desde Roma o “neminem laedere” traduz a eficaz imposição de um dever geral de abstenção.
E por qual razão a responsabilidade civil é e sempre foi assim? A resposta reside no senso comum de moralidade humana. É um fato básico que é mais fácil prejudicar os outros do que beneficiá-los. Nossa responsabilidade é baseada na causalidade, assim, sentimo-nos responsáveis por um resultado, conforme a nossa contribuição ativa para ele. Intuitivamente, cremos que somos muito mais responsáveis pelo mal que causamos por nossos atos do que pelos males cotidianos derivados de nossas omissões. Por isso, todos os deveres morais e obrigações nos impelem a não ofender a incolumidade de terceiros, sem que existam deveres positivos que estimulem os indivíduos ao altruísmo. Tudo isso explica a enorme aversão que temos diante de perdas, sem que haja uma inversa atração pelos ganhos sociais de comportamentos beneméritos, que possam irradiar esperança e solidariedade.
Nas relações obrigacionais a boa-fé objetiva desperta ‘o melhor de nós’, no sentido de converter partes antagonistas em parceiros de um projeto contratual, realçando deveres de cooperação, proteção e informação. O prêmio para os que seguem os “standards” de lealdade e confiança é o adimplemento dos deveres preexistentes. Diferentemente, a responsabilidade civil atua na esfera extracontratual, o mundo das pessoas que são estranhas umas as outras. Quando não há um prévio vínculo entre seres humanos, o que encorajaria alguém a transcender o dever moral e jurídico de não ofender a órbita alheia, a ponto de ser empático e se disponibilizar ao engajamento na cooperação recíproca com pessoas de culturas e nações distintas, ou até mesmo para beneficiar as gerações futuras? Será que o nosso senso de justiça sempre será limitado ao pequeno número de pessoas a quem devotamos a nossa afeição?
Eu sempre fui um entusiasta do iluminismo britânico, não do francês. São as virtudes sociais, mais do que a razão, que unem as pessoas. A ideia francesa da razão não é disponível às pessoas comuns e não possui nenhum componente moral ou social. Todavia, a benevolência é uma virtude mais modesta do que a razão, mas talvez uma virtude mais humana. Preocupados com o homem em relação à sociedade, os filósofos morais escoceses e ingleses perseguem o “éthos” da valorização do senso comum do certo e do errado e a compaixão como base para uma sociedade humana na qual a pessoa virtuosa é movida pela afeição natural por sua espécie. No Brasil, Adam Smith é identificado como o autor da obra ‘A Riqueza das Nações'. Porém, em sua terra natal, mais do que economista político, foi notabilizado como filósofo moral. A sua obra de maior estima é a ‘Teoria dos Sentimentos Morais’. Em uma magistral passagem, Smith sublinha que “sensibilizar-se muito pelos outros e pouco por nós mesmos, refrear nosso egoísmo e favorecer nossas afecções benevolentes constitui a perfeição da natureza humana. O homem naturalmente deseja não apenas ser amado, mas ser amável. Ele naturalmente teme não só ser odiado, mas ser odiável. Ele deseja não apenas louvar, mas ser louvável. Nós desejamos tanto ser respeitáveis quanto respeitados. Nós tememos ser tanto desprezíveis quanto sermos desprezados”. Enfim, são essas as virtudes ‘positivas’ incitadas pelo senso de solidariedade que Smith elevou sobre aquelas que chamava virtudes ‘negativas’ da justiça.
Infelizmente, a cultura brasileira herdou a tradição das virtudes negativas e artificiais da justiça, distanciando-se das virtudes positivas e naturais da ética. Some-se a isso o fato de que incorporamos não apenas o iluminismo francês, mas o seu sistema de responsabilidade civil, que consiste apenas em um arremedo de proteção social para vítimas de acidentes, pois o seu real desiderato foi o de legitimar a liberdade econômica daqueles que realizam atividades que expõem terceiros a riscos de danos. Todavia, já é tempo de alargarmos os horizontes e investirmos em uma ‘função promocional’ da responsabilidade civil, na qual a tônica será a aplicação das sanções premiais, tão decantadas por Norberto Bobbio. Para além de compensar, punir e prevenir danos, a responsabilidade civil deve criteriosamente recompensar a virtude e os comportamentos benevolentes de pessoas naturais e jurídicas. E de que forma? Na próxima semana trarei alguns “insights”. Até breve!
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