29/03/2016

A nova prisão civil do devedor de alimentos - Nelson Rosenvald

A PRISÃO CIVIL POR ALIMENTOS DECORRENTES DE ATO ILÍCITO
Ao ensejo do alvorecer de um novo Código de Processo Civil, vale a pena tocar em temas sensíveis ao direito privado. De acordo com o artigo 528 do CPC/15, “No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 dias pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo”. No § 3o do mesmo artigo, enfatiza-se que, na falta de pagamento, ou recusa da justificativa, haverá a decretação da prisão pelo prazo de 1 a 3 meses. Pois bem, o elogiável objetivo do artigo 528 foi o de reforçar o direito à tutela adequada através de técnicas processuais efetivas. Podemos enuclear essa ideia em quatro argumentos:
Primeiro, a excepcional previsão constitucional dessa prisão civil, no caso de “inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentar” (CF, art. 5º, LXVII), nunca mirou uma função punitiva, porém coercitiva. O desiderato da Lei Maior não é o de restringir a liberdade do devedor como uma espécie de “tutela específica” do inadimplemento, porém o de dissuadi-lo a cumprir o dever jurídico. Com efeito, mesmo que o devedor tenha sido encarcerado, prosseguirá em situação jurídica passiva quando escoado o prazo prisional.
Segundo, o direito fundamental aos alimentos se imbrica com o princípio da dignidade da pessoa humana, como forma de satisfação de necessidades vitais. Restringir a prisão civil ao pensionamento do direito de família implica considerar apenas uma espécie, desprezando os alimentos como gênero, que abrange obrigações decorrentes de um ato ilícito - tradicionalmente designado como lucros cessantes - priorizado nos artigos 948 a 954 do Código Civil, no setor da responsabilidade extracontratual. Seria empobrecedor sustentar uma pretensa dicotomia entre a causa familista ou obrigacional dos créditos alimentares, como justificativa de uma interpretação restritiva da prisão civil, açambarcando somente a primeira categoria (aliás, nem o Pacto de São José da Costa Rica, nem a Súmula vinculante 25 do STF operaram tal distinção). A proteção à vida não se condiciona a classificações jurídicas. De fato, no campo do direito material, não há distinção valorativa entre o mínimo existencial destinado a um filho ou àquela pessoa lesionada por um comportamento antijurídico que sofre redução em sua aptidão física, bem como, aos alimentos devidos aos dependentes econômicos da vítima de um homicídio. Indistintamente surgirá o dever constitucional de solidariedade. 
Terceiro, sendo essas as especificidades do crédito alimentar que justificam a previsão de prisão civil do devedor de alimentos, nada mais justo que a tutela jurisdicional seja adequada e efetiva para a proteção de direitos fundamentais. No Estado Democrático de Direito, ao invés da tutela ressarcitória ex post, o direito material coloca as suas fichas na tutela inibitória, como método preventivo de afastar a prática ou a reiteração de atos antijurídicos. O mencionado art. 528 do CPC materializa esse apelo, estendendo a técnica processual executiva da prisão civil para o cumprimento de sentença que condene a qualquer pagamento de prestação alimentícia.
Quarto, considerando o processo civil contemporâneo uma técnica a serviço de uma ética, ou seja, um instrumento de concretização de situações materiais, a estratégia formulada pelo legislador consiste em conceder ductilidade às técnicas idôneas a inibir o devedor a adimplir. Para além da clássica expropriação de bens, positiva-se a constituição de capital, o desconto em folha (ambos já aceitos pelos tribunais) e, sobretudo, o inovador fortalecimento das técnicas de indução ao cumprimento do dever alimentar, seja pela excepcional prisão civil, como também mediante o protesto do título judicial (§ 1o art. 528, CPC/15), ou mesmo pelo recurso a multa coercitiva periódica (art. 537, CPC/15). 
Enfim, se a norma constitucional que defere prisão civil deve ser interpretada restritivamente, tal cuidado concerne apenas a impossibilidade de restrição de liberdade por descumprimento de obrigações negociais emanadas de um ato de autonomia privada, jamais para circunscrever os “alimentos” ao âmbito de uma simples questão de família.

Você sabia que crianças e adolescentes também possuem direito à privacidade?

Você sabia que crianças e adolescentes também possuem direito à privacidade?

Veja essa notícia: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/160323_filhos_processam_pais_df?ocid=socialflow_facebook#share-tools

Pais poderão ser processados por seus filhos no futuro por divulgar fotos na internet de quando eles eram crianças, avalia o especialista francês em redes sociais e identidade digital, Éric Delcroix.
"Publicar fotos de menores na internet não é algo sem riscos", disse Delcroix à BBC Brasil, citando imagens, por exemplo, de crianças com os rostos lambuzados de comida que podem provocar zombarias entre colegas da escola e também mais tarde, quando a pessoa se tornar adulta.
"A lei vai evoluir nos próximos anos. Filhos poderão processar seus pais alegando que eles não tinham o direito de publicar imagens que podem causar constrangimento", afirma Delcroix, co-autor do livro As redes sociais são nossas amigas? (em tradução livre)".
"Se os filhos avaliarem que os pais cometeram violação da vida privada, eles poderão também exigir o pagamento de indenizações", afirma o especialista em internet.
Além disso, diz ele, brincadeiras na escola, de tirar sarro de um colega em razão de uma foto, podem rapidamente se agravar e afetar o bem estar da criança.
Hoje na França, como em outros países, são os pais que detêm os direitos relacionados à autorização de fotografar menores de idade e de divulgação dessas imagens.
"A jurisprudência evolui em função de mudanças de mentalidade e da sociedade. O problema virá à tona quando as crianças crescerem e tiverem consciência do impacto das imagens que foram divulgadas delas na internet", diz ele.
A publicação de fotos e vídeos também pode permitir a criação de uma espécie de "álbum digital" do menor de idade na internet, com a possibilidade de continuar acessível na rede quando a criança se torna adulta, afirma o especialista.

Pedófilos

Outro risco é o de que as imagens possam ser utilizadas por pedófilos na internet, aponta Delcroix.
Segundo ele, predadores sexuais podem criar um banco de imagens de crianças e até mesmo de bebês. "É possível inclusive identificar uma criança. Esse risco não existe apenas no Facebook, mas na internet de maneira geral", afirma.
Arquivo PessoalImage copyright
Image captionDelcroix é pai de duas adolescentes e pede autorização das filhas quando publica fotos da família (Foto: Arquivo Pessoal)
Outro problema ocorre quando os pais não supervisionam as imagens divulgadas por adolescentes.
"Algumas garotas de 10 ou 12 anos publicam fotos imitando poses de modelos, até mesmo com o apoio da família, que faz comentários elogiosos, mas que podem ser vistas como sensuais por alguns adultos", acrescenta o especialista.
Delcroix, pai de duas adolescentes, diz pedir autorização para as filhas quando publica fotos da família.
As fotos de perfis nas redes sociais, que são públicas, podem ser encontradas no Google Image mesmo após terem sido substituídas pelo internauta.

Alerta da polícia

A maior utilização de smartphones nos últimos anos tornou mais simples e rápida a divulgação de fotos e vídeos na internet, o que acabou aumentando consideravelmente essa prática.
Em vários casos, as pessoas publicam situações do dia a dia dos filhos, em casa, praticando atividades ou em algum evento, além de vídeos.
Em razão do debate que começa a surgir sobre a publicação de fotos de crianças na internet, a polícia francesa lançou no final de fevereiro um alerta de prevenção, pedindo para os pais "preservarem seus filhos".
O motivo do comunicado da polícia militar francesa foi a campanha "Orgulhosa de ser mamãe", lançada na rede social Facebook e que viralizou na internet.
A campanha pede para publicar três fotos com a criança e indicar dez amigos para fazer o mesmo.
A Comissão Nacional de Informática e de Liberdades da França (CNIL) recomenda aos pais para limitar ao máximo, nos parâmetros de confidencialidade das contas nas redes sociais, o acesso de fotos ao público em geral.
A utilização de "tags" que permitem identificar pessoas e o sistema de reconhecimento facial deve ser utilizado de maneira moderada, também orienta a CNIL.

22/03/2016

A família entre autonomia existencial e tutela de vulnerabilidades - por Gustavo Tepedino

A família entre autonomia existencial e tutela de vulnerabilidades - por Gustavo Tepedino
Fonte: http://www.conjur.com.br/2016-mar-21/direito-civil-atual-familia-entre-autonomia-existencial-tutela-vulnerabilidades
A evolução do tratamento jurídico das famílias revela movimento pendular entre dois valores caros ao atual sistema jurídico. Em primeiro lugar, a necessidade de se assegurar a liberdade nas escolhas existenciais que, na intimidade do recesso familiar, possa propiciar o desenvolvimento pleno da personalidade de seus integrantes. Esse o propósito do artigo 1.513 do Código Civil: “É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”. Por outro lado, a tutela das vulnerabilidades e das assimetrias econômicas e informativas, para que a comunhão plena de vida se estabeleça em ambiente de igualdade de direitos e deveres (artigo 1.511, Código Civil, ex vi do artigo 226, § 5º, da Constituição), com o efetivo respeito da liberdade individual. Tendo-se presentes esses dois vetores, e diante das intensas modifica­ções ocorridas nas últimas décadas na estrutura das entidades familiares, torna-se indispensável a reformulação dos critérios interpretativos, a despeito da resiliência, de alguns setores da doutrina e da magistratura, de admitir a incompatibilidade entre antigos dogmas de cunho religioso e político com tão radicais transformações — fenomenológica, percebida na sociedade ocidental, e axiológica, promovida pela legalidade constitucional.
A Constituição da República consagrou nova tábua de valores, da qual se pode extrair a transformação do conceito de unidade familiar que sempre esteve na base do sistema. Verifica-se, do exame dos artigos 226 a 230, da Constituição, que o centro da tutela constitucional se desloca do casamento para as rela­ções familiares dele (mas não unicamente dele) decorrentes; e que a milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus integrantes e ao desenvolvimento da personalidade dos filhos. De outra forma não se consegue explicar a proteção constitucional às entidades familiares não fundadas no casamento (artigo 226, § 3º) e às famílias monoparentais (artigo 226, § 4º); a igualdade de direitos entre homem e mulher na sociedade conjugal (artigo 226, § 5º); a garantia da possibilidade de dissolução da sociedade conjugal independentemente de culpa (artigo 226, § 6º); o planejamento familiar voltado para os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (artigo 226, § 7º) e a previsão de ostensiva intervenção estatal no núcleo familiar no sentido de proteger seus integrantes e coibir a violência doméstica (artigo 226, § 8º).
A hostilidade do legislador pré-constitucional às interferências exógenas na estrutura familiar e a escancarada proteção do vínculo conjugal e da coesão formal da família, ainda que em detrimento da realização pessoal de seus integrantes — particularmente no que se refere à mulher e aos filhos, inteiramente subjugados à figura do marido — justificava-se em benefício da paz doméstica. Por maioria de razão, a proteção dos filhos extraconjugais nunca poderia afetar a estrutura familiar, sendo compreensível, em tal perspectiva, a aversão do Código Civil de 1916 aos relacionamentos extraconjugais, simbolizados pelo estigma da concubina. O sacrifício individual, em todas as hipóteses de fracasso no relacionamento conjugal, era largamente compensado, na ótica do sistema, pela preservação da célula mater da sociedade, instituição essencial à ordem pública e modelada sob o paradigma patriarcal.
O constituinte de 1988, todavia, além dos dispositivos acima enunciados, consagrou, no artigo 1º, III, entre os princípios fundamentais da República, que antecedem todo o texto maior, a dignidade da pessoa humana, impedindo assim que se pudesse admitir a superposição de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes, mesmo em se tratando de institui­ções com status constitucional, como é o caso da empresa, da propriedade e da família. Assim sendo, a família deixa de ter valor intrínseco, como instituição capaz de merecer tutela jurídica pelo simples fato de existir, passando a ser valorada de maneira instrumental, tutelada na medida em que — e somente na exata medida em que — se constitua em um núcleo intermediário de autonomia existencial e de desenvolvimento da personalidade dos filhos, com a promoção isonômica e democrática da dignidade de seus integrantes.
Dito diversamente, altera-se o conceito de unidade familiar, antes delineado como aglutinação formal de pais e filhos legítimos baseada no casamento, para o conceito flexível e instrumental, que tem em mira o liame substancial de pelo menos um dos genitores com seus filhos — tendo por origem não apenas o casamento — e inteiramente voltado para a realização espiritual e o desenvolvimento da personalidade de seus membros. Nesse cenário há de se refletir sobre a conquista representada pela prevalência no direito da realidade fática da família como comunidade de pessoas de carne e osso sobre a família no modelo formal e institucional de reprodução sexual e acumulação econômica em torno da autoridade patriarcal. O afeto torna-se, nessa medida, elemento definidor de situações jurídicas, ampliando-se a relação de filiação pela posse de estado de filho e flexibilizando-se, com benfazeja elasticidade, os requisitos para a constituição da família. O direito de família passa a atribuir particular importância (não à afetividade como declaração subjetiva ou obscura reserva mental de sentimentos não demonstrados, mas) à percepção do sentimento do afeto na vida familiar e na alteridade estabelecida no seio da vida comunitária. Realidade e percepção da realidade se tornam para o direito de família indispensáveis para a superação de paradigmas formalistas e patrimonialistas. Nessa esteira, situa-se a ampla admissibilidade, pela jurisprudência atual, de entidades familiares extraconjugais, incluindo-se a união de pessoas do mesmo sexo (STF, ADPF 132/RJ e ADI 4277/DF, rel. min. Ayres Britto, j. 5/5/2011), as famílias simultâneas, cuja repercussão geral foi reconhecida pela Suprema Corte (STF, RG no ARE 656.298/SE, Rel. Min. Ayres Britto, julg. 8.3.2012), além das uniões poliafetivas, reguladas hodiernamente pelo tabelionato (recentemente, lavrou-se escritura pública no 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro para contratualizar união homoafetiva entre três mulheres), e cuja eficácia, no âmbito do direito de família, ainda é objeto de controvérsia, justamente porque o conceito de família há de ser necessariamente elástico, em contínua evolução.
Entretanto, há de se cuidar, com zelo de ourives, para que não se banalizem os sentimentos e o afeto, submetidos à percepção valorativa de cada magistrado ou, pior, às pretensões egoístas e patrimonialistas de protagonistas de conflitos de interesses. E o melhor antídoto para tais riscos mostra-se o balizamento do merecimento de tutela das relações afetivas pelos valores normativos constitucionais (democracia, igualdade, solidariedade, dignidade) que permeiam o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código Civil e toda a legislação infraconstitucional.
   No cenário da vida como ela é, o amor por vezes falta, o egoísmo aflora e os deveres estabelecidos nas relações afetivas devem ser integralmente preservados. A alteridade tem consequências para o constituinte. É como se a legalidade constitucional se valesse da percepção do afeto para imediatamente impregná-la e plasmá-la com os valores constitucionais, vinculando as relações jurídicas a deveres de solidariedade e igualdade. Torna-se indispensável, portanto, uma vez introduzida a realidade da vida, do amor e do afeto na experiência normativa, que não se releguem as relações de família à pura espontaneidade, desprovida de valores jurídicos, deixando-se em segundo plano os deveres constitucionais a que corresponde o amor responsável. Autonomia total para os arranjos familiares, sendo a responsabilidade pelo outro e por tudo aquilo que se cativa imprescindíveis na legalidade constitucional.
* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).

Reflexos do Novo Código de Processo Civil no Direito do Consumidor - por Bruno Miragem

Reflexos do Novo Código de Processo Civil no Direito do Consumidor - por Bruno Miragem
Fonte: http://www.conjur.com.br/2016-mar-16/garantias-consumo-reflexos-codigo-processo-civil-direito-consumidor
No próximo dia 18 de março entra em vigor o novo Código de Processo Civil. São muitos os estudos sobre sua repercussão nos vários domínios que perpassa o processo. Também no direito do consumidor — como não pode ser diferente — é sensível a importância das questões trazidas pela nova legislação processual. Por isso nesta e na próxima coluna, pensou-se em fazer um inventário das principais repercussões do novo CPC no direito do consumidor.
Note-se que o direito do consumidor, desde a origem, foi construído a partir de uma proximidade muito grande entre o direito material e as normas processuais. A efetividade do direito pari passu com a efetividade do processo, foi concebida originalmente, e depois desenvolvida pela jurisprudência, de modo a assegurar o cumprimento espontâneo ou coativo das regras estabelecidas pelo Código de Defesa do Consumidor. Aliás, muitas das alterações depois incorporadas pelas reformas do direito processual civil foram introduzidas no sistema jurídico brasileiro pelo Código de Defesa do Consumidor. Assim, por exemplo, a tutela específica da obrigação e a flexibilização do ônus da prova, sem prejuízo da verdadeira construção de um sistema de tutela coletiva de direitos, a partir da associação das regras do CDC e da Lei da Ação Civil Pública.
Agora, é momento de examinar as repercussões do novo Código de Processo Civil sobre o direito do consumidor. É sabido que o processo civil observa, nas últimas décadas, sensíveis transformações. Tradicionalmente, a separação dos planos do direito material e do processo teve por propósito assegurar às partes o acesso aos meios de defesa de seus interesses independentemente da razão que lhes assistia no plano do direito material. O valor em destaque era o da absoluta imparcialidade do juiz, restringindo, por isso, o poder de iniciativa. Cabia às partes instruir o processo, sob supervisão passiva do julgador. A decisão resultava daí, fortemente associada à melhor habilidade na demonstração dos fatos para conhecimento judicial. Gradualmente, contudo, o sistema processual clássico foi demonstrando suas dificuldades em relação às transformações de ordem social, política e econômica, e as novas exigências ao seu sistema de justiça, reclamando celeridade e efetividade das decisões judiciais.
Estas características, que transparecem no Código de Processo Civil de 2015, vão repercutir na decisão das demandas que envolvam relações de consumo.[1] As regras sobre a tutela coletiva de direitos não foram objeto de disciplina pelo CPC/2015, razão pela qual se preserva o sistema que associa as normas do CDC e da Lei da Ação Civil Pública. No mais, a renovação teórica e dogmática provocada pelo novo CPC, em parte, converge com os valores assentados pelo CDC. Porém, em relação a alguns institutos processuais específicos há de se ter atenção para que sua eficácia não contraste com a diretriz de efetividade dos direitos do consumidor, em conformidade com o direito fundamental que o assegura (artigo 5º, XXXII, da Constituição da República).
Algumas regras essenciais do novo CPC evidenciam sua convergência com o disposto no Código de Defesa do Consumidor. Assim, por exemplo, o artigo 7o do CPC, ao assegurar às partes a paridade de tratamento (ou paridade de armas), visa assegurar a igualdade material no processo, zelando pelo contraditório, e assegurando ao juiz poderes para flexibilizar o procedimento no tocante, entre outros aspectos, à dilação de prazos, distribuição do ônus da prova e determiná-las de ofício (artigo 370).[2] Esta diretriz do CPC/2015 associa-se aos direitos assegurados ao consumidor no processo, de modo a promover o acesso efetivo à justiça como acesso à tutela satisfativa do seu direito.
Examinemos alguns aspectos que mais diretamente relacionam-se com o direito do consumidor.
1) Jurisdição internacional e foro do domicílio do consumidor
A expansão do consumo de produtos e serviços para além das fronteiras nacionais, cujo estímulo pelo desenvolvimento e acesso pela internet é crescente, coloca em destaque a competência para julgamento das demandas de consumo como um dos desafios principais à efetividade dos direitos do consumidor. Neste sentido, não faltam exemplos nos contratos internacionais em geral, em que a imposição de cláusula de eleição de foro seja utilizada para beneficiar um dos contratantes com a submissão de eventual litígio ao país cujas regras lhes sejam mais favoráveis.

A efetividade dos direitos dos consumidores em relações de consumo internacionais, então, será desafiada pelas regras de determinação de competência para processar e julgar eventuais litígios daí decorrentes. Neste aspecto, o Código de Processo Civil de 2015 inovou com regra relativa à jurisdição competente para processar e julgar questões decorrentes de relações de consumo.
Estabelece o artigo 22, inciso II, do novo CPC: “Art. 22. Compete, ainda, à autoridade judiciária brasileira processar e julgar as ações: (...) II - decorrentes de relações de consumo, quando o consumidor tiver domicílio ou residência no Brasil”.  Trata-se de disposição que se encontra em acordo com o direito fundamental de defesa do consumidor, e seu acesso à justiça, independentemente do local onde tenha sido celebrado o contrato de consumo, assim como o local de cumprimento de suas prestações, que em ambos os casos poderá se dar fora do Brasil. O que atrai a jurisdição nacional, neste caso, é o domicílio ou residência do consumidor.
Trata-se de tendência internacional, já prevista na União Europeia pelo artigo 18 do Regulamento 1.215/2012 (Regulamento Bruxelas Reformulado). Porém, como assinala a doutrina, avança em relação à disposição europeia, uma vez que “não a restringe aos contratos internacionais de consumo dirigidos ao mercado brasileiro: basta a relação consumerista, não importando se o consumidor domiciliado ou residente no Brasil tenha aceito proposta dirigida ao nosso mercado ou procurou voluntariamente celebrar o contrato no exterior (consumidor turista, por exemplo).”[3] No caso de concorrência de ações no Brasil e em país estrangeiro, incide a regra do artigo 24 do novo CPC. Se formar coisa julgada a ação no Brasil, poder-se-á proceder ao juízo de delibação, deixando-se de homologar a decisão estrangeira.
Contudo, em relação à possibilidade de derrogação da jurisdição nacional, de que trata o artigo 25 do novo CPC, parece que a valorização do princípio da autonomia da vontade conflita com a indisponibilidade do direito básico do consumidor de acesso à justiça. Sabe-se que a cláusula de eleição de foro, nos contratos de consumo é considerada abusiva quando restrinja o acesso do consumidor à justiça, o que ocorre no caso em que se retire a possibilidade de demandar em seu lugar de domicílio ou residência. A possibilidade de eleição de foro diverso do estabelecido pela lei só será admitido pelo novo CPC através de disposição em instrumento escrito (artigo 63, §1º). Sendo reputada abusiva, pode ser reconhecida como tal, de ofício, pelo juiz, antes da citação, “que determinará a remessa dos autos ao juízo do foro de domicílio do réu.” A interpretação sistemática da regra em questão, no tocante ao consumidor, deve envolver tanto as situações em que ele for réu, quanto autor da ação. Por outro lado, tratando-se de contrato internacional, eventual reconhecimento da abusividade da cláusula de eleição de foro será causa para impedir a homologação da sentença estrangeira no Brasil.
2) Decisões de ofício e contraditório
Um segundo aspecto relevante diz respeito às condições de validade para as decisões de ofício pelo juiz. Como é sabido, o direito do consumidor revela-se a partir de normas de ordem pública, muitas das quais devem ser aplicadas de ofício. Caso mais conhecido é o da decretação de nulidade das cláusulas abusivas (artigo 51 do CDC). Muito se discutiu sobre a possibilidade de decretação de ofício, sem oportunidade de oitiva do réu nas ações envolvendo revisão de cláusulas abusivas, dar causa à violação do contraditório, especialmente quando se trate de decisão adotada pelos tribunais, em grau de recurso. Destes debates, inclusive, originou-se a Súmula 381 do Superior Tribunal de Justiça, que sob o fundamento de preservar o contraditório, definiu entendimento de duvidosa legalidade, e mesmo constitucionalidade (em face do que foi decidido pela ADI 2.591, pelo STF, julgando constitucional a aplicação do CDC aos serviços bancários, financeiros e securitários), ao indicar que nos contratos bancários (e somente nestes!) não poderia a abusividade das cláusulas ser conhecida de ofício pelo julgador.

O novo CPC traz, neste aspecto, uma regra geral importante em seu artigo 10, afirmando que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.” Trata-se de regra razoável, que compatibiliza o exercício do poder-dever do julgador com os direitos das partes no processo. Não por acaso, fundamenta a proposta de revisão da mencionada Súmula 381 do STJ, provocada pelo Min. Paulo de Tarso Sanseverino ao afetar aos recursos repetitivos o Recurso Especial 1465832/RS. Nas demandas de consumo, é indiscutível que trará mais conforto ao julgador que, ao realizar as determinações do Código de Defesa do Consumidor, conta com fundamento legal expresso com a finalidade de preservação do direito ao contraditório das partes.
3) Ônus da prova
Desde sua origem, o direito do consumidor foi objeto de atenção e críticas apressadas quando assegurou ao consumidor o direito de facilitação do exercício de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, nos casos de hipossuficiência ou verossimilhança (artigo 6o, VIII). Embora bem delimitada e submetida ao escrutínio judicial, não faltou quem criticasse a disposição como espécie de excesso de proteção ao consumidor, violando princípios básicos do processo civil sobre o tema. O tempo tratou de fazer desta regra um dos instrumentos mais importantes para a efetividade do direito dos consumidores, e mais do que isso, para a própria solução adequada do processo.

O novo Código de Processo Civil amplia o alcance dos poderes do juiz em matéria de iniciativa probatória. Estabelece, em seu artigo 373, a regra geral de que “o ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.” Contudo, prevê que “nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.” (artigo 373, §1º). Consagra-se a flexibilização da regra de imputação do ônus da prova para o processo civil em geral, mediante a possibilidade de sua distribuição pelo juiz entre as partes, conforme a impossibilidade de sua produção por uma delas ou maior facilidade pela outra. Note-se que a sistemática do Código embora se articule como regra (artigo 373, caput) e exceção (artigo 373, §1º), pode indicar, em relação à segunda hipótese, não propriamente inversão, mas regra de atribuição do ônus da prova, segundo premissas fáticas distintas (impossibilidade ou maior facilidade na produção da prova). Não se confundem, portanto, inversão e regra de atribuição (ou distribuição) do ônus da prova, hipóteses tecnicamente distintas.[4]
Há moderação desta regra de distribuição do ônus da prova no §2º do artigo 373 do novo CPC, ao dispor que “a decisão prevista no § 1o deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.” Toma-se clara referência na norma à restrição de que se imponha a qualquer das partes a obrigação de produção da denominada prova diabólica.
O CDC trata do tema desde a perspectiva tutelar do consumidor. Suas normas especiais visam assegurar a efetividade da proteção do consumidor. Há situações mesmo que a atribuição do ônus da prova ope legis imputa a responsabilidade do fornecedor, afastada apenas se produzir prova de fatos específicos (caso da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço, prevista nos artigos 12, §3º e 14, §3º do CDC) Pergunta-se então: haveria limitação imposta à inversão do ônus da prova pelo juiz, com fundamento nas regras do novo CPC, que possa tornar inefetiva a tutela dos direitos dos consumidores definidos em lei? Quer parecer que as situações do artigo 373, §2º do CPC/2015, e do artigo 6º, VIII, do CDC, são substancialmente distintas. A limitação à imposição do encargo de produzir prova impossível ou excessivamente difícil relaciona-se com a regra de distribuição pelo juiz no interesse do processo e visando à cooperação das partes com a busca da verdade (artigo 378 do novo CPC). Neste cenário, a impossibilidade ou dificuldade extrema de produção da prova não devem prejudicar a parte, mediante definição de critério para distribuição do ônus da prova. Situação distinta é a de inversão que realiza direito subjetivo de uma das partes, caso daquela que beneficia o consumidor em ações das quais seja parte. No primeiro caso, a distribuição do ônus da prova se dá no interesse do processo, no segundo, no interesse na realização de um direito fundamental de proteção. As situações não parecem se confundir.
Ainda sobre o tema da prova, o novo CPC inova em alguns aspectos gerais, relevantes também para demandas envolvendo relações de consumo. Seu artigo 464 define que o juiz indeferirá a perícia quando: “I - a prova do fato não depender de conhecimento especial de técnico; II - for desnecessária em vista de outras provas produzidas; III - a verificação for impraticável.” Por outro lado, prevê a possibilidade de que o juiz possa, de ofício ou a requerimento da parte, substituir a perícia por prova técnica simplificada, quando o ponto controvertido for de menor complexidade (artigo 464, §2º). Consistirá a prova “na inquirição de especialista, pelo juiz, sobre ponto controvertido da causa que demande especial conhecimento científico ou técnico.” (artigo 464, §3º). Trata-se de relativa inovação trazida para o sistema geral do CPC, embora já prevista no artigo 35 da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/1995).  Trazer o depoimento pessoal de um expertperante o juízo pode superar, em muitos casos, as dificuldades em relação ao custeio da prova pericial e sua interpretação. Permite, assim, maior flexibilidade e simplificação na coleta das informações relevantes para decisão. 
Na próxima coluna examinaremos outros aspectos do novo CPC de grande relevância para o direito do consumidor, em especial no tocante ao incidente de desconsideração de personalidade jurídica, às regras para a antecipação de tutela, e a nova disciplina de resolução de demandas repetitivas.

[1] MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 6ª ed. São Paulo: RT, 2016, no prelo.
[2] CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Comentários ao art. 1º. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR. Fredie. TALAMINI, Eduardo. DANTAS, Bruno. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 73.
[3] RAMOS, André de Carvalho. Jurisdição internacional sobre relações de consumo no novo Código de Processo Civil. Avanços e desafios. In: MARQUES, Claudia Lima. GSELL, Beate (Org.). Novas tendências internacionais do consumidor. São Paulo: RT, 2015, p. 569.
[4] Para a distinção, veja-se, dentre outros, os trabalhos de CREMASCO, Suzana Santi. A distribuição dinâmica do ônus da prova. Rio de Janeiro: GZ, 2009; CAMBI, Eduardo. A prova civil: admissibilidade e relevância. São Paulo: Ed. RT, 2006. Para a exegese da regra do CPC/2015: GAGNO, Luciano Picoli. O novo Código de Processo Civil e a inversão ou distribuição dinâmica do ônus da prova. Revista de Processo, v. 249, São Paulo: RT, novembro/2015, p. 117-139.

08/03/2016

O STF decidirá sobre a imprescritibilidade de crimes praticados contra a humanidade

A decisão se dará em processo de extradição argentino, acusado de integrar grupo paramilitar de extrema direita.

Entenda o caso:
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu encaminhar para o Plenário da Corte a Extradição (EXT) 1362, que trata de crimes praticados por integrante de associação paramilitar durante a ditadura argentina. No entendimento da Turma, que acompanhou voto ministro Edson Fachin, caberá ao Plenário decidir a questão da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, tese que a Procuradoria Geral da República (PGR) defende para embasar a decisão da extradição.

O caso trata do argentino Salvador Siciliano, que teve ordem de prisão expedida pelo Judiciário daquele país por suspeita de ter participado de associação paramilitar chamada “Triple A”, que operou entre 1973 e 1975.

Segundo a Justiça argentina, a associação se dedicou ao assassinato de integrantes da militância de esquerda, eliminação de comunistas, desafetos do governo e ameaças públicas por propaganda política. Há nos autos vários casos narrados de sequestro, agressão e assassinato praticados pela entidade.

A PGR alega que os crimes foram considerados na Argentina como contra a humanidade e declarados, portanto, imprescritíveis, sendo que o mesmo deve ser reconhecido no Brasil, que está sujeito a princípios e regras do direito internacional que levariam à mesma conclusão.

A proposta do relator foi seguida por unanimidade.

Roosevelt Arraes
Professor de Direito Eleitoral e de Hermenêutica Jurídica

01/03/2016

A Tomada de Decisão Apoiada e o Direito Sucessório

O estudo do Direito de Família sempre se desenvolveu nas clássicas dimensões do direito matrimonial e convivencial, do direito parental e do direito assistencial ou protetiva, compondo os títulos I a IV, do Livro IV, da Parte Especial do Código Civil em vigor. A par do texto codificado, uma torrencial legislação extravagante atualizadora e dinamizadora desse ramo do Direito, na compreensão da evolução pessoal e social do Homem.

Agora e outra vez, uma nova lei – com vigência desde o dia 3 de janeiro do corrente ano – promove significativas alterações no Código Civil de 2002 e nele introduz inovador capítulo no derradeiro título do Livro de Família, acrescentando após os institutos da Tutela (Cap. I) e da Curatela (Cap. II) o Da Tomada de Decisão Apoiada (Cap. III). Trata-se da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, publicada oficialmente no dia imediato, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência. Pessoa com deficiência, define a lei, é “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” Seu artigo 115 altera a denominação do atual Título IV, do Livro da Família, que passa a viger sob a rubrica “Da Tutela, da Curatela e da Tomada de Decisão Apoiada” e seu artigo 116 introduz capítulo inédito, que contempla novo instituto, o “Da Tomada de Decisão Apoiada”.

Inaugurando esse novo capítulo, o artigo 1.783-A conceitua o modelo: “A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.” Seu paradigma mais próximo é o artigo 43 do Novo Código Civil e Comercial argentino, que assim conceitua o novel instituto, em tradução livre do Autor: “Entende-se por apoio qualquer medida de caráter judicial ou extrajudicial que facilite à pessoa que o necessite a tomada de decisões para dirigir sua pessoa, administrar seus bens e celebrar atos jurídicos em geral.” Sua função precípua é promover a autonomia, facilitar a comunicação, a compreensão e a manifestação da vontade da pessoa com deficiência para exercer seus direitos.

Anote-se desde logo que a Tomada de Decisão Apoiada afasta a designação de curador. E por isso distingue-se dos demais institutos protetivos da pessoa, seja por sua pouca idade (tutela) ou por decreto de sua interdição (curatela), pois objetiva não a proteção da pessoa, mas a promoção de todos os seus direitos como pessoa. Diferentemente, então, da tutela e da curatela, a prestação de apoio tem por fim promover o exercício pessoal da capacidade jurídica pelo próprio afetado. Na Tomada de Decisão Apoiada a pessoa conserva sua capacidade de fato sem limitações ou impedimentos, autodeterminando-se. Portanto, a Tomada de Decisão Apoiada não é forma de interdição, pois preserva a vontade da pessoa, agindo os apoiadores complementarmente ao exercício da capacidade da pessoa. Ombreando com Nelson Rosenvald, “o apoio é uma medida de natureza ortopédica, jamais amputativa de direitos.” ²

Também não se confunde nem se substitui – como se poderia imaginar - pela figura do mandato para alcançar os mesmos objetivos, pois o mandatário não age em conjunto com o mandante, mas em nome dele. Na Tomada de Decisão Apoiada o beneficiário não corre o risco da inexecução do mandato ou de sua má execução, pois os apoiadores sofrem rigorosa e severa fiscalização do Juiz e do Ministério Público.

Ademais, o mandato cessa com a morte ou a interdição do mandante, ato judicial de proibição, vedação ou privação para execução de certos atos, manifestamente incompatível com a figura da Tomada de Decisão Apoiada.

A disciplinação legal do instituto, extremada nos onze parágrafos do novo artigo 1.783-A, do Código Civil, insere os apoiadores (com o mister de proteção) na realização das concretas e efetivas necessidades e interesses do beneficiário, nos limites do termo de apoio formulado em juízo (§ 1º). Para os demais atos aí não incluídos, não necessitará do auxílio dos apoiadores. Nessa linha inclusiva da lei, a preservação da capacidade do beneficiário vem contemplada expressamente no artigo 6º da Lei: “A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa”, reconhecendo-lhe igualdade perante a lei: “A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.” Desse modo, em não havendo reservas no termo de apoio formulado em juízo (§§ 1º e 4º), o beneficiário do modelo pode livremente testar, pois imune à interdição, conservando assim sua capacidade plena de se expressar e fazer-se compreender. A situação (Tomada de Decisão Apoiada) valida o ato de disposição de última vontade, não discriminando o beneficiário da proibição do artigo 1.860 do Código Civil. Não mais sendo considerada a pessoa com deficiência absolutamente incapaz, pela revogação dos incisos do art. 3º do Código Civil em vigor, mantendo como tal apenas os menores de 16 anos, é forçoso concluir que inexiste no direito brasileiro maior incapaz. Na mesma toada, deixaram de ser relativamente incapazes “os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido” (art. 4º, EPD). Em resumo: o portador de transtorno mental, que sempre foi considerado incapaz, com a nova lei passa a ser plenamente capaz. Essa é a regra. Sendo assim, ostenta plena capacidade ativa para testar.

Vencida a questão da capacidade testamentária ativa do beneficiário da nova figura, outra se apresenta para o debate: a da incapacidade para receber herança ou legado (CC/2002, art. 1.801, incs. I a IV) das pessoas eleitas pela pessoa com deficiência, os apoiadores, incluídas na proibição legal, enquanto fornecem elementos e informações necessários para que o beneficiário da medida possa realizar ato da vida civil? A resposta parece ser afirmativa em se considerando que a pessoa com
deficiência exerce seus direitos em igualdade de condições com as demais pessoas (no plano inclusivo da lei). A símile, tornam-se os apoiadores incapazes de receber herança ou legado, não porque escreveram a rogo o testamento da pessoa que devem apoiar, ou lhe serviram de testemunhas, mas em vista da situação especial que ocupam relativamente à pessoa do testador. Independentemente ou não de previsão no termo apresentado ao pronunciamento sobre o pedido de Tomada de Decisão Apoiada.

A plena e efetiva igualdade no exercício da capacidade jurídica da pessoa com deficiência com as demais pessoas, assegurada pela nova lei, além das questões acima propostas, outras ainda ensejarão inúmeros debates na doutrina e na jurisprudência para demonstrar sua efetividade, indispensáveis ao reconhecimento desse novo modelo social, especialmente no plano da teoria das incapacidades. Só o tempo se encarregará disso.

WALDYR GRISARD FILHO¹

¹ Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professor
Titular de Direito Civil na Faculdade de Direito do UNICURITIBA. Membro Efetivo do Instituto dos
Advogados do Paraná. Sócio fundador do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM – e
Presidente de sua Comissão de Ensino Jurídico de Família. Advogado e Consultor em Curitiba.

² ROSENVALD, Nelson. A Tomada de Decisão Apoiada – Primeiras Linhas Sobre um Novo Modelo Jurídico Promocional da Pessoa com Deficiência. In: Revista IBDFAM Famílias e Sucessões, vol. 10 – jul/ago. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015, p. 11-19.