A PRISÃO CIVIL POR ALIMENTOS DECORRENTES DE ATO ILÍCITO
Ao ensejo do alvorecer de um novo Código de Processo Civil, vale a pena tocar em temas sensíveis ao direito privado. De acordo com o artigo 528 do CPC/15, “No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 dias pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo”. No § 3o do mesmo artigo, enfatiza-se que, na falta de pagamento, ou recusa da justificativa, haverá a decretação da prisão pelo prazo de 1 a 3 meses. Pois bem, o elogiável objetivo do artigo 528 foi o de reforçar o direito à tutela adequada através de técnicas processuais efetivas. Podemos enuclear essa ideia em quatro argumentos:
Primeiro, a excepcional previsão constitucional dessa prisão civil, no caso de “inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentar” (CF, art. 5º, LXVII), nunca mirou uma função punitiva, porém coercitiva. O desiderato da Lei Maior não é o de restringir a liberdade do devedor como uma espécie de “tutela específica” do inadimplemento, porém o de dissuadi-lo a cumprir o dever jurídico. Com efeito, mesmo que o devedor tenha sido encarcerado, prosseguirá em situação jurídica passiva quando escoado o prazo prisional.
Segundo, o direito fundamental aos alimentos se imbrica com o princípio da dignidade da pessoa humana, como forma de satisfação de necessidades vitais. Restringir a prisão civil ao pensionamento do direito de família implica considerar apenas uma espécie, desprezando os alimentos como gênero, que abrange obrigações decorrentes de um ato ilícito - tradicionalmente designado como lucros cessantes - priorizado nos artigos 948 a 954 do Código Civil, no setor da responsabilidade extracontratual. Seria empobrecedor sustentar uma pretensa dicotomia entre a causa familista ou obrigacional dos créditos alimentares, como justificativa de uma interpretação restritiva da prisão civil, açambarcando somente a primeira categoria (aliás, nem o Pacto de São José da Costa Rica, nem a Súmula vinculante 25 do STF operaram tal distinção). A proteção à vida não se condiciona a classificações jurídicas. De fato, no campo do direito material, não há distinção valorativa entre o mínimo existencial destinado a um filho ou àquela pessoa lesionada por um comportamento antijurídico que sofre redução em sua aptidão física, bem como, aos alimentos devidos aos dependentes econômicos da vítima de um homicídio. Indistintamente surgirá o dever constitucional de solidariedade.
Terceiro, sendo essas as especificidades do crédito alimentar que justificam a previsão de prisão civil do devedor de alimentos, nada mais justo que a tutela jurisdicional seja adequada e efetiva para a proteção de direitos fundamentais. No Estado Democrático de Direito, ao invés da tutela ressarcitória ex post, o direito material coloca as suas fichas na tutela inibitória, como método preventivo de afastar a prática ou a reiteração de atos antijurídicos. O mencionado art. 528 do CPC materializa esse apelo, estendendo a técnica processual executiva da prisão civil para o cumprimento de sentença que condene a qualquer pagamento de prestação alimentícia.
Quarto, considerando o processo civil contemporâneo uma técnica a serviço de uma ética, ou seja, um instrumento de concretização de situações materiais, a estratégia formulada pelo legislador consiste em conceder ductilidade às técnicas idôneas a inibir o devedor a adimplir. Para além da clássica expropriação de bens, positiva-se a constituição de capital, o desconto em folha (ambos já aceitos pelos tribunais) e, sobretudo, o inovador fortalecimento das técnicas de indução ao cumprimento do dever alimentar, seja pela excepcional prisão civil, como também mediante o protesto do título judicial (§ 1o art. 528, CPC/15), ou mesmo pelo recurso a multa coercitiva periódica (art. 537, CPC/15).
Enfim, se a norma constitucional que defere prisão civil deve ser interpretada restritivamente, tal cuidado concerne apenas a impossibilidade de restrição de liberdade por descumprimento de obrigações negociais emanadas de um ato de autonomia privada, jamais para circunscrever os “alimentos” ao âmbito de uma simples questão de família.
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