Dra.
Fernanda Schaefer Rivabem
Me.
Karin Cristina Borio Mancia
Curitiba
– Paraná – Brazil
ABSTRACT
A
Medicina ingressa no século XXI repleta de desafios e dilemas a serem
equacionados. De um lado impulsionada, pelos avanços biotecnológicos; de outro, pela forte pressão exercida pela
denominada Sociedade da Informação, que trouxe consigo especial interesse e
valoração econômica dos dados clínicos sanitários. Nesse contexto, constata-se
que os dados clínicos passaram a ser considerados mais do que uma forma de
proporcionar avanço científico, mas também uma maneira de promover diferentes
estratégias mercadológicas, fomentar diversas formas de controle social, e
perpetrar uma possível segregação xenofóbica por meio de uma indevida (e
deturpada) classificação baseada em tais dados de saúde. Diante desse quadro,
surge a preocupação de se proteger o ser humano em sua integralidade,
investigando em que medida a dignidade da pessoa humana, como ponto de
equilíbrio entre a privacidade e os interesses sociais, pode oferecer o
equacionamento adequado à questão e proteção integral à pessoa.
Key
words: dados clínicos; privacidade; dignidade; proteção.
“E será sempre a forma de acesso às
informações a marcar o futuro dos processos de centralização e
descentralização: um centralismo que, agrupando em um único lugar as
informações e tornando-as acessíveis a todos facilita o conhecimento e a
participação? Ou uma descentralização que, fragmentando a informação e a
reservando a grupos restritos, conduz a uma substancial privatização do poder?”
Stefano Rodotà, 2008
INTRODUÇÃO
A crescente mercantilização
da Medicina, a difusão de medicamentos que melhoram o bem-estar e a sorrateira
redefinição do que é ser saudável, além de popularizarem as práticas médicas,
fazem surgir importantes questões quanto à gestão de dados clínicos e
principalmente sua proteção. Nesse contexto, necessário discutir qual seria o
caminho a ser trilhado na busca de compatibilizar a privacidade e a necessidade
social de informação obtida por meio da análise destes dados clínicos.
Com efeito, a preocupação
com o ser humano em sua integralidade não permite que ele seja usado como
instrumento do Biopoder ou mero objeto instrumentalizado pela Biopolítica. É
preciso, pois, indagar até que ponto as descobertas científicas e tecnológicas
podem irromper a tênue barreira dos tubos de ensaios e saltar para vida
cotidiana, sem que se descure da proteção ao ser humano, como valor em si
mesmo.
Assim, mostra-se de
fundamental importância discutir em que medida a dignidade da pessoa humana,
como ‘fiel da balança’ entre a privacidade e os interesses sociais, pode
possibilitar uma relação positiva na interação entre o ser humano individual e
coletivo, sem que, por outro lado, a utilização destes dados clínicos
sanitários possa fragmentar ou fazer cesuras na sociedade.
1. Dados de saúde e formas de xenofobia na
História da Humanidade
Xenofobia é palavra de origem grega que, segundo o dicionário
Houaiss (2001, p. 2894), significa “s.f.
desconfiança, temor ou antipatia por pessoas estranhas ao meio daquele que as
ajuíza, ou pelo que é incomum ou vem de fora do país; xenofobismo”. É medo
que não deve ser associado apenas ao estrangeiro, mas sim, a tudo que é
diferente, desconhecido. Em sentido amplo, pode ser definida como qualquer
forma de preconceito (embora esse por si só não possa ser considerado uma
fobia) a pessoas ou grupos diferentes e que pode vir mascarado por ódio ou
aversão extrema. Por isso, no presente trabalho, optou-se em adotar essa
expressão, ao invés de, tão-somente, tratar as graves possibilidades de
segregação decorrentes de classificação por dados clínicos como casos de
discriminação.
A utilização indevida de dados médicos pode possibilitar o
desenvolvimento de um Biopoder que inscreve a xenofobia nos seus mecanismos de
controle, podendo, por isso, levar a isolamento de grupos e regiões inteiras
quando identificadas pessoas portadoras de doenças consideradas altamente
contagiosas, de origem e/ou transmissão desconhecidas, de alta taxa de
mortalidade, etc. São mais do que atos preconceituosos, mas verdadeira aversão
a enfermos e a enfermidades e, em alguns casos, a plena desconsideração da
dignidade humana sob falso (mas atraente) pretexto de proteção da coletividade.
A História humana[1] é
marcada por episódios de xenofobia extrema contra pessoas portadoras de
diversas espécies de doenças ou características genéticas. Um dos exemplos mais
antigos (os registros mais remotos datam de 1350 a.C., no Egito) foram os
leprosários criados para isolar da sociedade portadores de hanseníase[2] e outras
doenças de pele consideradas incuráveis. Na Idade Média a hanseníase, por estar
fora do cenário endêmico europeu, permaneceu também fora das atenções
científicas. A retomada dos estudos ocorreu no início do século XIX com o
‘reencontro’ da doença nas áreas coloniais. O surto de lepra em terras
havaianas nos anos de 1860 disseminou a preocupação de que a enfermidade fosse
rapidamente levada à Europa, o que conduziu as autoridades locais a promover,
entre outras medidas, o isolamento da ilha Molokai (transformada em colônia de
leprosos)[3]. A
ausência de conhecimento científico sobre a doença levou à criação de asilos
para confinamento dos doentes; ao controle de familiares; ao isolamento de
filhos de pais doentes; ao veto à entrada de estrangeiros portadores da doença
em diversos países. Como se nota, todas medidas de exclusão baseadas em dados
clínicos.
Outra doença que influenciou fortemente a humanidade foi a varíola
(cuja origem ainda é bastante controversa). A partir do século X as péssimas
condições sociais e de higiene permitiram a sua disseminação, atingindo toda a
Europa entre os séculos XI e XV. Mas, foi nos séculos XVII e XVIII que
ocorreram os grandes surtos, quando a doença ganhou a denominação de ‘peste
negra’, pelo grande número de vítimas na Europa, nas Américas e na África.
Enquanto a origem da doença e as formas de contágio não eram desvendadas,
várias propostas para sua contenção surgiram, entre elas, duas merecem
destaque: 1) A solução oferecida por Ishinho, no século X (Japão), denominada
de ‘tratamento vermelho’. Propunha que os portadores da doença usassem roupas
vermelhas e fossem imediatamente colocados em isolamento (em cujo ambiente
também deveria ser empregada a cor vermelha). Essa forma de identificar e
classificar os doentes de varíola[4] vigorou
até o século XVI, quando começa a ser substituída pela variolização (forma
rudimentar de vacinação com inoculação de varíola benigna), já utilizada na
China e na Índia desde o século XI e empregada na Europa apenas no século XVII,
ainda que de forma pouco desenvolvida. 2) Os regulamentos de urgência que se
espalharam por toda a Europa da Idade Média e eram adotados toda vez que uma
doença epidêmica aparecia em uma cidade. Regulamentos determinavam que previam
formas de isolamento dos doentes e suas famílias; determinação de quarentena
controlada por autoridades municipais; inspeções de rotina nas residências de
cidades afetadas pela doença; desinfecção das residências. Mais uma vez se nota
que doenças podem justificar, segundo o discurso dominante que tem por pilar a
ideia de proteção da coletividade, formas de exclusão e de isolamento de
doentes e de pessoas que com eles tiveram contato.
A vacina contra a varíola foi desenvolvida apenas em 1796 pelo
médico inglês Edward Jenner, sendo a partir de 1801 (e depois de muita
resistência) implantada em praticamente todo o mundo. A evolução das vacinas
nos séculos XIX e XX, em conjunto com programas nacionais (e globais) de
vacinação da população permitiram que a varíola fosse considerada erradicada
pela OMS em 1980, sendo tida como a única doença que o homem conseguiu
‘extinguir’ por meio de sua intervenção direta.
Outro fato histórico importante ocorreu durante a II Guerra
Mundial (1939-1945), quando o regime alemão nazista preocupou-se em fixar
parâmetros médicos que pudessem levar à identificação da raça ariana, então
considerada perfeita e superior. Esses dados clínicos conduziram milhares de
pessoas à segregação, à tortura e à morte nos campos de concentração. O mito da
supremacia ariana foi construído com base em características fisiológicas que
promoveram uma das mais chocantes formas de xenofobia vivenciadas pela
humanidade. A ideia central e nada científica da ‘tese da higiene racial’ era
eliminar da raça ariana todos os genes e características que não fossem
genuinamente alemãs, ideal encampado por quase 45% dos médicos alemães (todos
filiados ao Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães - conhecido
como Partido Nazista), o que, por exemplo, levou à esterilização forçada de 350
mil pessoas entre 1934 e 1945[5].
No entanto, apesar de toda a sua acientificidade o darwinismo
social vem encontrando vozes ressonantes desde então e, com o incremento da
Biotecnologia vem ampliando assustadoramente seus espaços nas mais diversas
sociedades, contando, no entanto, com apelo mais consumista do que político.
Fato é que as atrocidades cometidas durante a II Guerra Mundial, no suposto ‘da
ciência’, com a utilização indevida de dados médicos, não podem se repetir e,
para isso, é necessária a conscientização sobre a integral proteção da pessoa
humana, preservando-se o sigilo de seus dados seus dados clínicos ou genéticos,
agora em uma perspectiva de defesa de interesses sociais (a pessoa também como
ser plural).
Continuando o percurso histórico, já no ano de 1976 no Zaire
(África) uma nova doença se manifestou de forma assustadora: o ebola. O
primeiro caso ocorreu no povoado de Yambuku
e menos de um mês depois já havia chegado à capital Kinshasa. Diante de sua letalidade e da rapidez com que o vírus se
propagava as autoridades sanitárias do país determinaram o fechamento do
Hospital Ngaliema (na Capital),
colocando o local sob rigorosa quarentena e ao seu redor estabelecendo
rigorosas barreiras sanitárias. Toda a região de Bumba, onde a epidemia teve início, também foi colocada em
isolamento total e sob lei marcial. Mas, apesar do isolamento, pouco tempo
depois já havia relatos da doença na fronteira com o Sudão, nas províncias de N’zara e Maridi. Em 05 de novembro o primeiro caso da doença é identificado
na Europa – Geoffrey Platt um dos cientistas responsáveis pela pesquisa com o
novo vírus contraiu a enfermidade em um acidente no laboratório localizado em Port Down, Inglaterra. Imediatamente as
autoridades inglesas tomaram medidas extremas para contenção do vírus, entre
elas, o deslocamento do pesquisador e de sua família para o Hospital Coppets Wood que teve seus 160 leitos
desocupados, permanecendo uma equipe médica em quarentena dentro do nosocômio.
Geoffrey Platt espantosamente se recuperou e a Europa respirou aliviada ao
saber que as medidas tomadas pelas autoridades sanitárias tinham sido eficazes
para conter o vírus[6].
O isolamento das regiões afetadas na África também conseguiu conter o avanço da
doença, no entanto, trouxe outras consequências devastadoras, pois a falta de
suprimentos e pessoal qualificado nas áreas isoladas permitiu o desenvolvimento
de outras doenças infecto-contagiosas.
A epidemia do ebola assim como surgiu, desapareceu, apresentando
em anos seguintes episódios esporádicos (no total foram 18 entre 1976 e 2004,
divididos entre diversos países africanos), mas igualmente graves. Fato é que
mais uma vez a História demonstrou que medidas como isolamento de povoados,
fechamento de fronteiras e determinação de quarentena são sempre as primeiras
alternativas pensadas na contenção de surtos epidemiológicos, pouco importando
seus efeitos nefastos sobre a população em geral ou os efeitos discriminatórios
contra os doentes e seus familiares. A neutralização por meio do isolamento
apresenta como ponto positivo a possibilidade de sua contenção, mas, por outro
lado, representa total afronta à vida do enfermo e à dignidade das pessoas com
quem com ele teve contato.
Quando se acreditava que as grandes doenças infecciosas poderiam
ser controladas pelo conhecimento humano e pela tecnologia, no início dos anos
(19)80 “os médicos assistiram,
impotentes, ao surgimento de uma nova doença, caracterizada por infecções
múltiplas devidas a microorganismos raros e teoricamente pouco patogênicos e de
evolução inexorável para o óbito”[7]. As
manifestações iniciais do HIV (vírus da imunodeficiência humana) ocorreram em
pacientes americanos homossexuais que possuíam múltiplos parceiros o que levou
à primeira estigmatização relacionada à doença[8]. Quando
em meados de 1981 apareceram relatos da doença em refugiados do Haiti, nova
onda de preconceitos surgiu imputando-se, agora, a causa da enfermidade e sua
origem a haitianos homossexuais que haviam emigrado para os EUA. Apenas em 1982
a doença passa a ser identificada como SIDA/AIDS
(Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), iniciando-se a dissociação com a
homossexualidade em virtude do aparecimento de casos diagnosticados em pessoas
hemofílicas heterossexuais e crianças. No entanto, o preconceito inicial
impediu que medidas de saúde pública fossem prontamente implantadas,
permanecendo a doença por alguns anos “escondida” da opinião pública, mesmo
porque, ainda não havia informações suficientes sobre sua origem, formas de
contágio, prevenção e cura. Em 1984, após calorosa batalha entre os
pesquisadores Robert Gallo (americano) e Luc Montagnier (francês) a causa da
doença foi identificada: um novo vírus surgira, o HIV. Fato inconteste é que
mesmo diante de campanhas nacionais e internacionais e na batalha pela busca da
cura, o mundo parece ainda despreparado para lidar com os impactos sociais e
econômicos da AIDS.
É verdade que desde seu surgimento os conhecimentos sobre a
enfermidade aumentaram exponencialmente e a letalidade (a curto prazo) do vírus
atenuada pelo desenvolvimento de diversos coquetéis (combinação de diferentes
fármacos) de medicamentos. Mas a procura pela cura e por vacinas ainda
continua, bem como, continuam latentes vários estigmas criados contra os
doentes. A história da AIDS impôs um
novo marco mundial com o trato das doenças, forçando o diálogo entre sociedade
e políticas públicas de saúde, entre grandes empresas farmacêuticas e governos,
aproximação que parece ganhar maior importância a cada ano e que fez crescer as
preocupações com as estigmatizações decorrentes de novas doenças e as decisões
tomadas para contê-las.
As primeiras pestes do século XXI vieram em formas de gripes: a
aviária, tecnicamente denominada de SARS (Severe
Acute Respiratory Syndrome – Síndrome Respiratória Aguda Grave causada pelo
vírus H5N1), cuja origem foi apontada na China (Hong Kong) em fevereiro de 2003
e a gripe suína, tecnicamente chamada A(H1N1 – o mesmo vírus da gripe espanhola[9])[10], cujo
primeiro caso foi identificado no México em abril de 2009. As duas possuem alto
grau de letalidade e foram declaradas pandemias, pois, por se transmitirem pelo
ar, se expandiram rapidamente por diversos países. Dentre as primeiras medidas
para conter a SARS foi determinado o isolamento de moradores de um prédio
inteiro de apartamentos em Hong Kong (à época denominado de ‘solidão forçada’).
No México, para tentar conter o avanço da A(H1N1) o governo determinou a
paralisação de todas as atividades por dez dias, solicitando à população que
permanecesse em suas residências. Em ambos os casos a OMS sugeriu como medidas
para ajudar na contenção da doença: quarentena de pessoas que tiveram contato
com infectados e isolamento dos doentes, restrições de viagens a áreas
infectadas, desinfecção de espaços públicos e privados e controle de
passageiros. Medidas que cada vez mais contam com o apoio maciço da população e
aparentemente não geraram grandes polêmicas, uma vez que já difundida a ideia
de que o isolamento de alguns estaria beneficiando muitos.
“Uma epidemia, entendida como fenômeno
social, mobiliza comunidades a revelar comportamentos que incorporam e
reafirmam valores sociais e modos de compreensão do evento”[11]. A análise de epidemias, ainda que brevemente realizada,
evidencia as respostas políticas, sociais, morais e científicas diante das
diversas ameaças à saúde humana, revelando a necessidade de se analisar essas
questões como fatos contínuos, que apontam erros e acertos na condução de
políticas públicas e análise de dados clínicos populacionais.
Nota-se, então, que medidas de segregação baseadas em dados
clínicos não são novidade na História da humanidade, nem parecem ser
questionadas pela população em geral que costuma aceitá-las passivamente pois
apresentadas em discursos que as sustentam como medidas necessárias para a
proteção do bem-estar geral. No entanto, no século XXI a ampla circulação dos
dados clínicos em conjunto com as novas tecnologias biomédicas e a mídia
(sempre com notícias em tons alarmistas e pessimistas quando se trata de
propagação de doenças) podem criar novas formas de xenofobia que autorizariam o
isolamento dos mais diversos grupos de doentes ou até mesmo fechamento de
fronteiras.
Para além de legitimar as práticas científicas o (Bio)Direito deve
se preocupar agora em proteger o ser humano em sua integralidade (como ser
individual e como ser plural), não permitindo que seja instrumento do Biopoder
ou mero objeto instrumentalizado pela Biopolítica. Deve-se, procurar, portanto,
resgatar a validade formal e material do Direito, promovendo-se como valor
supremo a dignidade da pessoa humana como um valor pré-normativo.
2. Biopoder e Dignidade da Pessoa Humana
Como se pode notar, a História da humanidade é repleta de exemplos
de como os dados referentes à saúde podem ser utilizados para classificar e
discriminar pessoas, por isso, a necessidade de se discutir a (im)possibilidade
de desagregação da pessoa de seus dados médicos.
A nova configuração do Biopoder nos dias atuais, obriga a repensar
o próprio direito à saúde que agora se encontra fortemente influenciado por um
poder agenciador de demandas informado por quem detém, desenvolve e
comercializa produtos e serviços biotecnológicos. É a natureza Biopolítica do
poder contemporâneo que permite a estruturação de um Biopoder ajustado perfeitamente
às necessidades mercadológicas que disseminam angústias inquietantes sobre a
saúde presente e futura das pessoas e sobre a necessidade de ampla utilização
de dados médicos. O Biopoder, então, para além de promover uma gestão baseada
em cálculos e estatísticas por parte do Estado (instrumentos da Biopolítica),
revela-se como “agenciamento simbólico
das técnicas a serviço da saúde por parte da empresa biotecnológica” (José
Roque JUNGUES, 2009, p. 290).
O Biopoder manifesta-se atualmente, portanto, na ‘sutileza’ dos
sedutores e refinados discursos de consumo e não apenas no autoritário e
normatizante controle por parte do Estado, difundindo-se, dessa forma, um
direito à saúde: 1) voltado prioritariamente ao acesso e consumo das novíssimas
tecnologias médicas e farmacêuticas; 2) cada vez mais afastado de determinantes
sociais, culturais e ambientais (elementos indispensáveis à realização da vida
digna); 3) que relativiza elementos essenciais de seu conteúdo: prevenção,
promoção e educação; 4) que esvazia a perspectiva da inclusão sanitária; 5) que
desloca a ênfase no corpo doente, promovendo determinantes mais plurais, agora
com ênfase nos fatores de risco (especialmente aqueles que considera
‘autoimpostos’, como, por exemplo, o estilo de vida).
Esse deslocamento nas políticas públicas de saúde da centralidade
da assistência para a convocação de todos os indivíduos para a gestão dos
cuidados de sua própria saúde permite a difusão de uma Medicina que dispensa a
figura do médico, pois conclama o conjunto da sociedade para o cuidado privado
do corpo e da saúde, promovendo um ideal de saúde ‘criado’ pelas grandes
empresas de biotecnologia (com a ajuda da mídia por meio de elaboradas
campanhas publicitárias[12]),
diluindo, dessa forma “as fronteiras
entre doentes e supostamente saudáveis”[13] e
criando um sistema de escolhas baseado nas ideias de prudência e
responsabilidade de cada um sobre sua própria saúde presente e futura.
Por isso, o movimento utilitarista vem ganhando adeptos já que
realiza um discurso que sustenta ser valorizador da vida em comunidade, cujo um
dos pilares é a vida saudável construída por meio de procedimentos de
‘autovigilância’ e práticas ‘autodisciplinares’ que estabelecem o novo
imperativo da saúde: “dever de cada um e
objetivo de todos” (Michel FOUCAULT, 1986, p. 197). “Agora, cada cidadão precisa tornar-se um ativo parceiro na condução da
saúde, aceitando sua responsabilidade de garantir seu próprio bem-estar”
(Nicolas ROSE, 2007, p. 63) e de influenciar na construção do bem-estar
coletivo.
Dessa forma, fixados os ideais de ‘saúde perfeita’ e com o
desenvolvimento do tecnocapitalismo[14] parece
inevitável a desagregação entre a pessoa-fonte[15] e seus
dados clínicos o que vem ocasionando a extrema valorização econômica das
informações biológicas contidas no corpo humano e em seus dados clínicos. O
resultado dessa verdadeira padronização do discurso da saúde e da qualidade de
vida é a desmaterialização do próprio homem que vem continuamente e
perigosamente sendo reduzido a meras funcionalidades biológicas. Daí que “[...] a diminuição ou perda das suas qualidades atinge não apenas sua
dimensão corporal, mas o próprio sujeito de direito, em sua integralidade, com
reflexos sobre a sociedade e a própria ordem jurídica.” (José Antônio Peres
GEDIEL, 1998, p. 84).
A ‘coisificação’ do ser humano, tornando-o fonte inesgotável de
informação que possui não só valor científico, mas também econômico, traz
questionamentos que implicam no redimensionamento da própria noção de corpo
humano, mesmo quando há uma grande quantidade de dados clínicos que não
permitem a identificação de seu titular. Isso decorre da necessidade da ciência
em artificializar e despersonalizar o ser humano, tratando-o como fonte
abundante e infindável de informações biológicas. A anonimização, sem dúvida, é
facilitadora da circulação de dados médicos porque retira a sua proteção da
tutela da privacidade da pessoa a quem se refere. No entanto, não impede
críticas contundentes à desagregação entre a pessoa-fonte e seus dados
clínicos, bem como, não afasta o perigo da má utilização desses dados,
importando em grave fator de risco para a prevalência e proteção de interesses
sociais (que podem ser desvirtuados, manipulados) em desconsideração absoluta à
preservação da própria privacidade.
É, por isso, preocupante a tendência de diversos governos de se
apoiarem na adoção das soft laws[16] para
reger situações ligadas à proteção dos dados pessoais. Se por um lado
questiona-se a eficácia jurídica desses instrumentos jurídicos por seu baixo
grau de normatividade, por outro, o fenômeno da hiperregulação em áreas como a
da proteção de dados clínicos se mostra também perigosa, pois corre-se o risco
de não permitir o desenvolvimento biotecnológico, ou então, autorizando-o de se
tornar norma rapidamente obsoleta em face das novas e surpreendentes
tecnologias. Então, qual seria o caminho a ser trilhado na busca entre
compatibilizar a privacidade e a necessidade social de informação obtida por
meio da análise de dados clínicos?
Desenvolve-se, como forma de resistência, a funcionalização da
proteção da dignidade da pessoa humana face à possibilidade de cessão de seus
dados clínicos, o que permite compreender o corpo humano subjetivado como
elemento essencial para o exercício de diversas liberdades, visando revalorizar
o próprio homem em sua essência. A tarefa é extremamente difícil, ainda mais
quando desenvolvida em sociedades de consumo e em sociedades que ainda têm
dificuldades para reconhecer no outro um semelhante, mesmo diante da existência
de diferenças.
Necessário então perceber que a pessoa não é um mero dado
ontológico ou biológico, mas traz encerrada em si uma série de elementos que
lhe são imanentes. Essa natureza transcendente do corpo humano permite
percebê-lo para além do intangível ou sagrado, é necessário agora pensá-lo como
fonte de informação (individual e coletiva) que provoca os mais diversos tipos
de cobiças (especialmente as de cunho patrimonial) e que exigem uma proteção
mais efetiva do ser humano como valor em si, que, por isso, também já não pode
mais ser reduzido a mero elemento das relações jurídicas cuja atuação
(classicamente concebida) é “[...] delimitada pelo personagem que irá
representar frente ao objeto [...]”,
resumindo-se a simples centros de interesses patrimoniais.
Assim, embora impregnado de indiscutível conteúdo ético (dimensão
axiológica) o princípio da dignidade da pessoa humana deve ganhar uma nova
dimensão para além daquela individualista que está em sua raiz, uma vez que a
pessoa “não pode mais ser vista como um
dado formulado pelo sistema (mero sujeito abstrato de relações jurídicas) [...], mas como dado pré-normativo, que é
composto pelo valor que a pessoa representa em sua dignidade como tal”
(Jussara Maria Leal de MEIRELLES, 2009, p. 52). A dignidade deve ser pensada
como algo supra-individual que remete sempre e indissociavelmente ao gênero
humano.
A pessoa humana deve ser considerada em si como um valor e é a
partir desse valor que o ser humano agora deve ser pensado como um ente plural
(integrado por várias dimensões que continuamente interagem entre si) ao mesmo
tempo individual e coletivo, ser que possui uma existência única, mas que ao
mesmo tempo é partícipe do mundo. A pessoa para além do homem considerado
normal ou padrão[17]
deve ser tida como parte de uma coletividade que exige tanta proteção quanto a
pessoa considerada em si, devendo estas realidades estarem perfeitamente
equilibradas, não se podendo afirmar absolutamente a prevalência de uma sobre a
outra. Livre em suas escolhas, autônomo em suas decisões, mas consciente de que
a saúde não deve ser um mero objeto de consumo, mas sim, algo a ser promovido e
que possibilitará o resgate da harmonia social. Trata-se de apostar na “capacidade de autorregulação [sic] dos sujeitos sem que isso signifique a
retirada das responsabilidades do Estado quando às condições de vida”[18], pois
indispensáveis ao ideal de vida digna.
Nas exatas palavras de Gregory Walter Graffin III: “I’m one, and plural too”[19], o que
significa afirmar que é preciso que o homem se compreenda não apenas como ser
individual, mas como ser plural, transcendente e que necessita de constante
proteção de seus valores existenciais. É, portanto, necessário reconstruir a
humanidade para que seja possível ao ser humano, reconhecendo-se na comunidade
em que está inserido, proteger a si e aos seus semelhantes partindo-se para uma
verdadeira construção social e não de necessidades consumistas criadas por quem
está no poder (econômico ou político). Reconhecer no princípio da dignidade da
pessoa humana o ponto de equilíbrio entre privacidade e interesses sociais é
importante, mas só o futuro poderá dizer se será suficiente em face das forças
de mercado.
Se a humanidade é capaz de resistir às formas de poder e de criar
ininterruptamente subjetividades, deve também ser capaz de compreender sua
transcendência, a dimensão de seus atos e a sua verdadeira esfera de liberdade,
tarefa que não é fácil. Por isso, a dignidade merece ser protegida “no presente, sob o olhar lançado ao seu
futuro, em respeito ao passado e a todas as gerações que fizeram possível ser a
vida humana, hoje, o que é” (Jussara Maria Leal de MEIRELLES, 2009, p. 53),
evitando-se, dessa forma, que a sociedade de controle tome para si as
subjetividades criadas e as transforme em ideais de consumo, de identificação e
de comportamento, dissolvendo o ser humano no social e no coletivo idealizados
pelo mercado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do desenvolvimento de
novas biotecnologias ávidas por vender mercadorias e procedimentos médicos
sofisticados que prometem saúde e bem estar, surge a necessidade de se repensar
o significado (e o alcance) da proteção à privacidade dos dados clínicos
sanitários.
Quanto mais se avança no
campo das Biociências, mais expostas ficam as fragilidades teórico-políticas,
práticas e científicas destas descobertas. Talvez, a mais importante e especial
descoberta seja a de que o ser humano é um ser social, e que deve ser
considerado além do homem padrão, como integrante e parte de uma coletividade,
sem que isso implique em descurar a sua proteção individual, como ser de
existência única a ser preservado.
Essa dualidade que permeia a
discussão da gestão dos dados clínicos sanitários faz pensar a premência da
proteção aos valores existenciais mais importantes e primordiais do ser humano,
em contrapartida à sua condição social, sem que haja a prevalência de um sobre
o outro. O equilíbrio e a harmonia entre as duas dimensões do ser humano
(individual e coletivo) é o ideal ser alcançado, até para que não se considere
o direito à saúde como um mero objeto de consumo.
O reconhecimento de que o
princípio da dignidade da pessoa humana pode representar o ponto de equilíbrio
entre essas duas realidades – a privacidade e os interesses sociais – é um
longo e árduo caminho a ser trilhado, cujas consequências e acertos só serão
confirmados (ou não) pelas forças do tempo e do mercado.
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PINHEIRO, R.F. (Coords.). Direito
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e do patrimônio. Curitiba: Juruá, 2009. p. 49-60.
12-
MORAES, T.D; NASCIMENTO,
M.L. Da norma ao risco: transformações na produção de subjetividades
contemporâneas. Psicologia em Estudo,
Maringá, v.7, n.1, jan./jun. 2002, p. 91-102.
13-
REZENDE, R. Doutores da
agonia. Revista Superinteressante,
São Paulo, n. 225, abr. 2006, p. 52-61.
14-
RODOTÀ, S. A vida na sociedade da
vigilância. A privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
15-
TOLEDO JUNIOR, A.C. Pragas e epidemias. Histórias de
doenças infecciosas. Belo Horizonte: Folium, 2006.
[1] Embora aqui sejam
abordados brevíssimos relatos sobre as doenças que afetaram a História humana,
o que se pretende destacar em cada um dos episódios é a recorrente segregação de pessoas portadoras de doenças (em especial
enfermidades infecto-contagiosas), sem
forte oposição da opinião pública porque ‘justificados’ pela ideia de
proteção de toda a coletividade.
[2] A lepra foi confundida por muito tempo com o “mal de Lázaro, elefantíase-dos-gregos,
morféia” (Dilma CABRAL, 2006, p. 149). Com a desmistificação da doença no
século XX, a expressão lepra foi substituída pela politicamente correta
hanseníase, adotada pelo Brasil a partir de 1976 para evitar o preconceito que
ainda insistia(e) em assombrar os portadores dessa doença.
[3] Dilma CABRAL, 2006, p. 150.
[4] Como se não bastasse essa proposta discriminatória de
identificação e isolamento dos doentes, no século XVIII descobriu-se que a
varíola também poderia ser forte ‘aliada’ em confrontos armados. Na Revolta de
Pontiac (ingleses x franceses e índios americanos), registra-se, o primeiro
relato da utilização de uma doença para enfraquecer o exército inimigo (guerra
biológica). O exército inglês fez uso de cobertores infectados para contaminar
e disseminar os índios, então aliados aos franceses. Com o surto da doença o
conflito na América do Norte se enfraqueceu, permitindo a volta do controle das
terras aos ingleses. (Antonio Carlos de Castro TOLEDO JUNIOR, 2006, p. 23). As
noções de guerra biológica e bioterrorismo ganham novas dimensões no século
XXI, mas a possibilidade de utilização do vírus da varíola ainda é uma ameaça.
Embora considerada erradicada desde 1980 (OMS), cepas do vírus foram
armazenadas em dois laboratórios de alta segurança (classificados em nível 4 -
um nos EUA e outro na Rússia, com o aval da OMS), com a justificativa de
permitir o aprofundamento das pesquisas sobre a doença e de utilização para a
fabricação de vacinas no caso de seu reaparecimento.
[5] Rodrigo REZENDE, 2006, p. 57.
[6] Antonio Carlos de Castro TOLEDO JUNIOR, 2006, p. 61-76.
[7] Antonio Carlos de Castro TOLEDO JUNIOR, 2006, p. 77.
[8] Inicialmente o nome proposto para a doença foi Gay Related Immunodeficiency Disease –
GRID (Imunodeficiência relacionada aos gays).
(Antonio Carlos de Castro TOLEDO JUNIOR, 2006, p. 81).
[9] A gripe espanhola assolou o mundo entre 1918 e 1919,
matando aproximadamente 40 milhões de pessoas (foi o mais mortal dos surtos de
gripe). “Apesar de ficar conhecida com
esse nome, em diversos países foi considerada um mal vindo de fora, sendo
chamada de Flanders grippe na
Inglaterra, de febre siberiana na Rússia, de febre chinesa na Sibéria, de
catarro espanhol na França e de febre russa na própria Espanha” (Antonio
Carlos de Castro TOLEDO JUNIOR, 2006, p. 137).
[10] Epidemias de gripe não são novidade na História humana. A
humanidade nos séculos XIX e XX encarou quatro grandes surtos (1888-89;
1918-19; 1957-58 e 1968-69), epidemias que provocaram muitas mortes. Por isso,
campanhas de vacinação anual contra os diversos tipos de gripe são promovidas
desde a década de 19(60) (Antonio Carlos de Castro TOLEDO JUNIOR, 2006, p.
142). No entanto, devido a alta capacidade de mutação do vírus da influenza as vacinas hoje existentes
podem não ser eficientes contra novas cepas que aparecem anualmente (como foi o
caso da A(H1N1)), verificadas, assim, condições para novas pandemias. Por isso,
a Organização Mundial da Saúde, reconhecendo o alto grau de transmissibilidade
das gripes e suas potencialidades danosas, criou em 1952 uma Rede Global de
Vigilância do Influenza, composta por
diversos países encarregados de pesquisas com as mutações do vírus da influenza.
[11] Maria Cristina da Costa MARQUES, 2002, p. 42.
[12] “A partir de uma
série de reivindicações, que tem na vida e na saúde o seu foco principal, somos
quase sufocados com campanhas, governamentais, midiáticas, de ONGs, as quais
buscam atuar diretamente sobre o comportamento das pessoas, sempre em nome de
um saber verdadeiro. Trata-se, pois de uma tendência do capital de cada vez
mais tornar científico e racionalizar o cotidiano” (Thiago D. MORAES; Maria
Lívia do NASCIMENTO, 2002, p. 99). As pessoas, então, passam com maior
intensidade a vigiar e controlar seus próprios hábitos para tentar enquadrá-los
nas molduras idealizadas pelo poder, controlando, assim, os riscos que sobre
sua saúde possam se manifestar.
[13] João Leite FERREIRA NETO, et al, 2009, p. 457.
[14] Expressão cunhada por Hermínio Martins (2005, p. 14) que se
traduz em maximizar a sobreposição entre conhecimento e capital por meio da
crescente capitalização do conhecimento.
[15] Expressão que denota a dicotomia entre a (clássica)
sacralidade da pessoa e de seu corpo e a transformação deste em fonte valiosa
de informação.
[16] São instrumentos jurídicos com baixo grau de normatividade,
não vinculativos e extremamente flexíveis, compostos por normas de conduta.
Justificam-se na necessidade de definir deveres de adequação dos ordenamentos
jurídicos a novas realidades trazidas pelas ciências e tecnologia. No entanto,
não devem ser consideradas meras obrigações morais, mas sim indicações de
conduta que por sua novidade ainda não admitem sua formalização em hard law. Segundo seus defensores
estariam mais próximas das necessidades humanas porque sua flexibilidade
permite sua adequação às novas relações que surgem na Sociedade da Informação e
sua rápida aceitação por parte dos Estados. Por outro lado, é exatamente sua
extrema flexibilidade que pode trazer insegurança à proteção da pessoa humana.
[17] Construído pela sociedade de controle (para esse trabalho
considerada como uma intensificação da sociedade disciplinar de Michel
Foucault) conforme seus modelos de comportamento ideal que transformam o corpo
(humano e social) em uma heterogeneidade (de gestos ou indivíduos) por meio de
análises, modulações e estatísticas tendentes à formatação de modelos úteis e,
principalmente obedientes aos ideais por ela conclamados.
[18] Gastão Wagner CAMPOS, et
al, 2004, p. 747.
[19] Gregory Walter GRAFFIN III, 1994, [s.p].
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