Texto aprovado no VIII Congresso Mundial de Bioética - Gijón - Espanha - 2013
PATERNALISMO E AUTONOMIA – UMA FALSA DICOTOMIA?
Dra.
Andreza Cristina Baggio
Dra.
Fernanda Schaefer Rivabem
Curitiba – Paraná – Brazil
ABSTRACT
A
prática médica sofre, atualmente, as mais diferentes pressões (em especial em
virtude das novas tecnologias), mas, talvez a maior delas, seja a necessidade
de abandonar completamente os ideais paternalistas, a fim de se garantir
respeito à autonomia do paciente e consequente respeito à sua dignidade. Esta
comunicação tem por objetivo demonstrar como a relação médico-paciente evoluiu
ao ponto de hoje ser necessário pensar a humanização da prática médica e a
informação médica como um direito fundamental do paciente. A partir de uma
pesquisa multidisciplinar, elegeu-se como ponto harmonizador o princípio da
confiança, princípio de natureza ética e jurídica que não só equilibra
paternalismo e autonomia, como, principalmente transforma essa relação em uma
relação dialogada e de cooperação mútua, capaz de garantir o desenvolvimento de
uma relação equilibrada.
Key
words: paternalismo; autonomia; dignidade; confiança; informação.
iNTRODUÇÃO
A velocidade em que as informações giram o mundo e as constantes e
espantosas inovações (bio)tecnológicas têm influenciado sobremaneira a prática
médica e, especialmente, o próprio direito à saúde, criando inevitáveis tensões
entre direitos fundamentais, produzindo expectativas nem sempre legítimas e
colocando em risco até mesmo a noção de dignidade da pessoa humana.
Dentre as questões que se apresentam, importante é discutir o
verdadeiro alcance da autonomia do paciente e do dever do médico à informação.
Discussão que parece constantemente colocar em lados opostos médicos e
pacientes e que costumeiramente procura criar uma dicotomia entre o clássico
paternalismo e o incipiente reconhecimento da autonomia do paciente.
O que
este ensaio pretende demonstrar é que contrapor paternalismo e autonomia é
criar uma falsa e indevida dicotomia que acaba tornando uma relação que já é
naturalmente conflitiva em uma relação essencialmente conflitiva, o que pode
colocar em risco saúde e recuperação do paciente.
De fato, a relação médico-paciente é, a priori, assimétrica: o médico detém o
conhecimento e os meios técnicos, enquanto o enfermo se lhe apresenta com
ausência de saúde, colocando bens indisponíveis como vida e integridade física
e psíquica à mercê de sua atuação. Essa assimetria natural, no entanto, não se
deve caracterizar pelo desequilíbrio, mas sim, por consideração e respeito
mútuos, sustentáculos do diálogo que entre eles deve existir e da confiança
necessária ao desenvolvimento desta relação.
Contudo, as exigências da sociedade contemporânea não permitem a
criação de vínculos afetivos com pessoas que são consideradas clientes, bem
como essa proximidade não é aconselhada pelos diversos códigos de ética médica.
Essa distância afetiva acabou não só despersonalizando a relação
médico-paciente como, também, fez por muitos anos prevalecer o ideal
paternalista como informador absoluto desse vínculo. Por isso, importante
discutir o verdadeiro alcance da autonomia e se ainda existe lugar para o
paternalismo.
1. Relação médico-paciente
A evolução da Medicina e do próprio direito à saúde afetaram
sobremaneira a relação médico-paciente. Na Modernidade (séculos XV a XIX), a
recuperação dos ensinamentos hipocráticos e galenos em sua pureza paternalista
e as condições de desenvolvimento humano (social e econômico) precárias,
acabaram levando à grande crise dessa relação, que se tornou ainda mais
verticalizada. Essa visão trouxe, por consequência, a sub-valoração e
degradação do paciente, transformando-o em mero objeto da atuação médica
(desumanização da Medicina) que se realizava em uma interação meramente técnica
e instrumental limitada apenas ao orgânico e que permitiu o prevalecimento de
um interesse maior na enfermidade do que no enfermo e a exacerbação do paternalismo
médico.
No século XX o desenvolvimento biotecnológico agravou essa
situação, fazendo com que a Medicina se tornasse extremamente especializada e
racionalista (cega e surda[1]), ou
seja, ainda mais científica e menos humana (Medicina Tecnocêntrica), permitindo
que a adoração à técnica, à tecnologia e a ambientes tecnicamente perfeitos
prevalecessem sobre o respeito ao ser humano. O desenvolvimento social e
tecnológico das ciências médicas embora tenha retirado a aura de sacralidade
que pairava sobre o profissional médico, retardou o reconhecimento da autonomia
do enfermo em tomar decisões.
Com a chegada do século XXI ganhou força a preocupação em
humanizar e democratizar a relação médico-paciente. Movimento que quebra o
ideal organicista valorizando a dignidade da pessoa humana, e levando a
Medicina a repensar o vínculo eminentemente paternalista de submissão do
paciente a todas as decisões do facultativo, para se realizar em uma relação
interpessoal que reconhece a autonomia do enfermo e é protegida não apenas por
normas éticas, mas também, pelo Direito. Coloca-se, dessa forma, ênfase não
somente no orgânico, mas também, nas demais dimensões da pessoa humana que
implicam respeito à sua individualidade e o seu reconhecimento como parte de um
grupo social. Afirma Elio Sgreccia (2002, p. 197) que
O doente (ou alguém por ele) que tomou consciência de seu estado de
saúde e de seus limites, que reconhece não ser competente no campo da doença
que o ameaça e diminui a sua autonomia, tendo em vista recuperar ou prevenir
prejuízo à sua autonomia, toma a iniciativa de se dirigir a outra pessoa, o
médico, que, por sua preparação e experiência da profissão é capaz de ajudá-lo.
O doente permanece sendo ator principal
da administração da saúde. O médico que aceita ajudá-lo é também ele ator, mas
no sentido de quem colabora com o sujeito principal ou para um
determinado fim [nos limites éticos e jurídicos] [sem grifo no original].
Sabe-se que “la
medicina es una ciencia; la profesión médica es el ejercicio de un arte baseado
en ella” (Hans JONAS, 1997, p. 99). Arte que se concretiza não em compreender um problema clínico em
uma parte do corpo, mas sim, em entendê-lo num ser humano considerado em sua
integralidade bio-psíquica-social. Assim, ainda que o objeto da atuação médica
seja o corpo humano (e, por consequência, a saúde), não pode o profissional
fazer abstração da totalidade do paciente, em especial, no que se refere à sua
liberdade de escolha (autodeterminação). Deve o facultativo saber, ainda que
intuitivamente, que ao entrar em contato com o corpo doente, está
automaticamente tomando contato com questões íntimas (e até secretas),
aproximando-se, dessa forma, de uma pessoa com necessidades especiais e
diversas, considerando, pois, que não é possível o adequado exercício da
Medicina se não for de maneira personalizada.
Como toda arte, a Medicina também possui objetivos, que se
realizam em três grandes níveis de complexidade: a complexidade das
enfermidades; a complexidade dos seres humanos e a complexidade das interações
possíveis entre enfermos e enfermidades. Por isso, José Fermín Pietro Aguirre
(2001, p. 1) afirma que a relação médico-paciente se desenvolve em três
momentos distintos que se aprofundam à medida que a relação se desenvolve e que
exigem linguagem diferenciada. São eles,
1-
Llamada del paciente. El médico
contesta volcándose en su ayuda con una distancia afectiva mínima. [...]. El lenguaje no verbal[2] será el protagonista, debiendo transmitir una acogida calurosa y una
disposición incondicional de ayuda [...].
2- Alejamiento u objetivación. El enfermo se convierte en un objeto de estudio
y la distancia afectiva se amplia de forma considerable. Es el período de la
anamnesis, las exploraciones y pruebas diagnósticas, fase de la relación
médico-paciente en que el la neutralidad afectiva es necesaria, aunque dura
para el enfermo. En esta fase el médico buscará, mediante lenguaje verbal,
obtener la mayor información posible [...]. El lenguaje
verbal proporcionará al médicos datos imprescindibles para el diagnóstico y
tratamiento y, al mismo tiempo mediante lenguaje no verbal se continuará
transmitiendo interés especialmente.
3-
Personalización. Una vez establecido el
plan terapéutico a seguir el enfermo se convierte en persona que sufre y con el
hay que establecer una interrelación humana. Durante esta etapa tiene lugar el
tratamiento biológico y psicoterápico del paciente. [...].
En la tercera fase se desarrollará la labor retórica del médico. La
comunicación informativa-persuasiva y psicoterápica del médico dirigida al
enfermo y sus familiares constituyen los aspectos retóricos de la práxis médica.
São fases multidimensionais que nem sempre se desenvolvem de
maneira harmoniosa ou que se possa facilmente perceber a mudança de uma para a
outra, mas que, obrigatoriamente, devem promover completa interação entre
médico e paciente, permitindo que estabeleçam um diálogo pautado pela confiança
e pelo respeito (e a identificação da linguagem utilizada pelo médico traz
importantes pistas de como o relacionamento se desenvolve).
Pode-se, então, afirmar que a relação médico-paciente se realiza
em três grandes dimensões intimamente e obrigatoriamente interligadas:
socioeconômica; técnico-científica e intersubjetiva de ajuda. Portanto, para
além do inegável valor social que à profissão médica se confere, é preciso
tratá-la como uma relação sempre interpessoal e jurídica e que, por isso, não se
submete apenas a códigos de ética, mas sim a leis que contém regras e
princípios que informam a prática médica.
A visão humanista dos atos médicos faz com que a relação
médico-paciente passe a ser regida por diversos princípios éticos e jurídicos
que tendem a ser um ponto de equilíbrio face às forças de mercado. Entre esses
princípios, destaca-se, por sua relevância e importância para o presente
trabalho o da confiança, princípio que visa preservar equilibrada a relação
médico-paciente.
2. Princípio da confiança: o elo
necessário entre paternalismo e autonomia
Em 1927 declarou o médico Joseph Collins (2008, p. 607-609) que “the longer I practice medicine the more I
am convinced that every physician should cultivate lying as a fine art. [...]. No one can stand the whole truth about
himself; why should we think he can tolerate it about his health, and even
though he could, who knows the truth?”[3]
Analisando-se a relação médico-paciente nos dias atuais, pode-se
afirmar que a assertiva infelizmente ainda se verifica na prática médica e que
a gratidão e a confiabilidade se perdem como expressão do relacionamento entre
médico e paciente, transformando-se em um vínculo perverso que afirma: ninguém
é confiável.
Assim, o dever de veracidade, antes um princípio informador da
relação médico-paciente, passa a ser mitigado pela banalização e valorização da
mentira, “as pessoas estão exageradamente
familiarizadas com ela a ponto de poucas quererem saber e viver com a verdade” (Angela
Maria Pires CANIATO, 2007, p. 96), uma vez que essa pode ser muito dura e
provocar sofrimento. Esconder ou distorcer a verdade do paciente passou a ser
não apenas um exercício de poder, mas uma ideologia eticamente aceita (até
mesmo pelos Códigos de Ética Médica) e marcadamente paternalista, pronta a
ocultar a realidade da doença que afeta o doente, ignorando o seu desejo (e
direito) de ser sobre ela informado; ou pronta para falsear a real finalidade
de um tratamento.
Desloca-se, dessa forma, o foco da discussão: ao invés de se focar
na pergunta sobre quais seriam as excepcionais justificativas para mentir;
coloca-se ênfase na busca de se saber se os médicos devem ou não contar a
verdade. Ora, uma mentira é uma mentira, não interessa por quem ou como é
contada e, portanto, é conduta que deve ser condenada, não contando os médicos
com especial autorização para ocultar ou falsear a realidade (baseados em sua
visão subjetiva desta), ainda mais quando se trata de conduta tendente a
obtenção do consentimento para tratamento ou coleta de dados clínicos.
Muito se fala sobre o direito à verdade, mas na realidade, o que
se pretende é a possibilidade de exercer objetivamente o direito à informação,
não se restringindo, portanto, à verdade subjetivamente considerada[4]. A
relação médico-paciente não pode ser marcada por omissões propositais, mas sim,
pela possibilidade do próprio doente escolher o que deve ou não lhe ser
revelado e para quem pode ser revelado. Afinal, como poderia o paciente livremente
decidir se não conhece toda a verdade sobre seu estado de saúde ou sobre a
destinação a ser dada a seus dados clínicos? No entanto, para que a escolha
seja realmente livre, é preciso se ter em mente noções de confiança, até
porque, em tempos de sociedade hipercomplexa, a confiança deve permear todas as
relações interpessoais.
Como explica Niklas Luhmann
(1996, p. 14), a atual sociedade vê-se diante de uma extrema complexidade, e
nessa perspectiva fica evidente que as relações humanas já vêm habitualmente
carregadas de certa carga de desconfiança. Para o autor (1996, p. 14),
A questão da
complexidade define o problema fundamental a partir do qual a confiança pode
ser analisada funcionalmente e comparada com outros mecanismos sociais,
funcionalmente equivalentes. Onde há confiança há aumento de possibilidade para
a experiência e a ação; há possibilidade do aumento da complexidade do sistema
social; e também há um aumento do número de possibilidades que podem
reconciliar-se com sua estrutura, porque a confiança constrói uma forma mais
efetiva de redução da complexidade.
No mesmo sentido, Ricardo Luiz Lorenzetti (2005, p. 38) afirma que a
sociedade, atualmente, vive a era da prestação de serviços e produtos por meio
dos chamados ‘sistemas expertos’. Estes sistemas se formam quando os prestadores
de serviços apresentam-se como detentores da técnica e experiência
profissional, de modo que só resta aos seus clientes confiar na tal experiência
que se diz existente. Este é também o entendimento de Anthony Giddens (1991, p.
101-105), para quem a sociedade vive a era dos sistemas especializados, que “dispõem de modos de conhecimento técnico que têm validade independente
dos praticantes e dos clientes que fazem uso deles” e “penetram em todos os
aspectos da vida social nas condições de modernidade”. Para o autor, os
sistemas especializados “não se limitam às áreas tecnológicas, mas estendem-se
às relações sociais e às intimidades do eu”. Estes sistemas especializados
dependem essencialmente da confiança, definida por ele como “crença na
credibilidade de uma pessoa ou sistema, tendo em vista um dado conjunto de
resultados ou eventos, em que essa crença expressa uma fé na probidade ou amor
de um outro, ou na correção de princípios abstratos (conhecimento técnico)”.
E proteger a confiança, é também respeitar a dignidade da pessoa
humana, sendo este um valor intrínseco ao direito à vida. De fato, para o ser
humano, sentir-se digno é ser respeitado, valorizado, lembrado em suas
expectativas, reforçado em suas qualidades. O sentimento de dignidade para o
homem é aquele de força e coragem que impulsiona o viver. Quem busca a
realização de seus sonhos e o cumprimento de suas metas de bem estar, a
constituição de uma vida de satisfação psíquica, emocional e econômica,
necessita sentir o reconhecimento de seus esforços e o salutar desenvolvimento
de suas atividades em consonância com a sua inserção no meio social onde vive,
expressando-se neste contexto a proteção à sua dignidade.
A dignidade da pessoa humana
está relacionada com a defesa dos direitos humanos fundamentais, sob a noção de
que dignidade é o atributo do ser. É a natureza do ser humano que gera a
necessidade de respeito às suas necessidades básicas, independentemente de sua
origem, condição social, econômica, etc. No tocante à relação médico-paciente,
portanto, o direito deste à informação acerca de seu real estado de saúde, ou
mesmo em optar pela omissão dessas informações estão intimamente relacionados
com a tutela da sua dignidade e a confiança que deposita em seu médico.
Este direito à informação decorre
da vulnerabilidade do paciente, que retrata a situação de submissão, de
sujeição à prática médica que o torna absolutamente dependente da técnica do
profissional de saúde. O médico detém o conhecimento técnico, e tal fato o
torna responsável perante o paciente quanto à utilização deste conhecimento. Assim,
a informação, na relação médico-paciente, deve ser tratada como um direito
fundamental, pois garante a escolha digna quanto aos procedimentos, técnicas,
métodos de cura, e mesmo o direito a não ser informado.
É de se dizer, ainda que, a
informação, enquanto direito fundamental de qualquer ser humano, decorre da
boa-fé objetiva, e propicia o equilíbrio nas relações interpessoais, tutela
interesses de solidariedade e proteção à dignidade humana, e valoriza a
confiança depositada pelo doente na técnica médica. Aliás, a informação deve
ser tratada na relação entre médico e paciente como um dever secundário, ou um
dever de conduta, sendo possível, inclusive, a responsabilização do
profissional de saúde pela ausência de adequada informação.
No que diz respeito às relações
entre médicos e pacientes, quanto maior a confiança por este depositada
naquele, maior deverá será o grau de certeza quanto ao respeito ao direito à
informação, já que, como dito acima, não dispõe o paciente vulnerável de dados precisos acerca de sua situação de saúde,
senão aqueles em poder do seu médico. Lembre-se, portanto, que a confiança é
valor que merece tutela, principalmente porque dela nascem expectativas
legítimas. A violação das expectativas nascidas de comportamentos geradores de
confiança gera responsabilidades.
Assim, os frágeis argumentos de que o paciente não é capaz de
compreender e refletir logicamente sobre as informações que lhe são dadas, não
apenas pela complexidade do que se revela, mas por sua própria situação; que a
comunicação direta ao paciente poderia prejudicar seu tratamento ou
recuperação, ou destruir sua esperança; ou até mesmo causar uma ansiedade
extrema; que quem fornece os dados não tem real dimensão de sua importância
para a ciência ou para a saúde pública; não encontram respaldo no princípio
maior do respeito à dignidade da pessoa humana, por serem proposições meramente
consequencialistas[5],
que mascaram o respeito à autonomia e desconsideram a incerteza sobre as
próprias suposições utilizadas para sustentá-los, por isso, “lies mays increase rather than relieve
suffering.”[6]
A privação da informação ao paciente (seja por omissões,
insuficiência de informações ou dados truncados) retira-lhe a capacidade
reflexiva sobre a sua própria condição; subtrai-lhe o poder de
autodeterminação, deixando-lhe ainda mais vulnerável a manipulações e, até
mesmo, ao mercado; diminui-lhe, significativamente, a capacidade de
discernimento e julgamento, inserindo-lhe num círculo de apatia e conformismo
que lhe deixa à mercê das decisões familiares, médicas e quiçá mercadológicas.
Assim, a mentira ainda que com intuitos altruístas não deve ser admitida.
Deve-se sim, valorizar o princípio da confiança como o elo, o ponto de
equilíbrio entre o paternalismo e a autonomia do paciente.
O dever de veracidade é um direito do paciente e, por suas
características especiais, exige exercício dirigente e cauteloso do
facultativo, de acordo com os limites impostos pelo próprio doente, visando
proporciona-lhe a apresentação adequada do seu diagnóstico e prognóstico;
permitindo livre e construtivo diálogo entre médico e enfermo na busca de
esclarecimentos e aconselhamento; consolidando o direito à autodeterminação
informativa e o respeito aos sentimentos do próximo na efetivação de uma Medicina
mais humanizada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os novos conhecimentos sobre o corpo humano e as potencialidades
anunciadas pela Biotecnologia afetam diretamente bens considerados
indisponíveis e juridicamente protegidos. A capacidade preditiva sobre a saúde
do ser humano e a possibilidade de intervir sobre sua matéria biológica,
modificando-a, vem promovendo o constante debate entre paternalismo e
autonomia, debate que insiste em trazer consigo dicotomias que deveriam há
muito terem sido superadas pela prática médica.
É incontestável que a Medicina se desempenha sobre um objeto
especial, que possui um fim em si mesmo: o organismo humano. “La ‘materia prima’ es aquí ya la última e completa, el paciente, y el
médico tiene que identificarse con su objetivo propio. Ésta es en cada caso la
‘salud’ [...]. El cuerpo es lo objetivo, pero se trata de
sujeto” (Hans JONAS, 1997, p. 99). Mas, justamente por ser indissociável do corpo humano o sujeito ao
qual pertence, deve o paciente ser observado de acordo com a visão humanista,
ou seja, como pessoa especialmente vulnerável (não como mero cliente – visão
mercantilista da Medicina[7]).
Trata-se, dessa forma, em reconhecer que é relação que implica,
necessariamente, uma interação
comunicativa (diálogo), que permite a aproximação, o conhecimento e o
respeito ao outro, uma vez que se realiza nos escopos: informativo, terapêutico
e decisório.
No novo contexto da Medicina, em que regras mercadológicas exercem
fortes pressões e que as mais diversas tecnologias dão impulso a novas
expectativas, a intermediação promovida pela Bioética aproximou médicos e
pacientes e hoje “o respeito à
integridade, à liberdade, à confidencialidade e à dignidade da pessoa humana
são inalienáveis e fazem parte do cotidiano dos que trabalham em medicina” (Sérgio I. Ferreira COSTA; Leo PESSINI, 2004, p. 189), considerando-se, dessa forma, a pessoa como um fim em si
mesma. Por isso, a relação médico-paciente para além de superar qualquer
dicotomia entre paternalismo e autonomia, deve ser pautada pelo princípio da confiança, este sim,
considerado meio harmonizador da relação médico-paciente.
REFERÊNCIAS
AGUIRRE, J.F.P. Palabra, palabrería y verdad en el discurso del médico. Revista de Retórica y Teoría de la
Comunicación, Espanha, ano 1, n. 2, jul. 2001. [s.p.].
BEAUCHAMP,
T.L.; CHILDRESS, J.F. Principles of
bioethics. 6ª ed. Londres, Reino Unido: Oxford University Press, 2009.
CANIATO,
A.M.P. A banalização da mentira na sociedade contemporânea e sua internalização
como destrutividade psíquica. Revista
Psicologia & Sociedade, [s.l.], v. 19, n. 3, 2007. p. 96-107.
COLLINS,
J. Should doctors tell the truth? In: KUHSE, H.; SINGER, P. Bioethics an anthology. 2ª. ed. Reino Unido: Blackwell Publishing, 2008. p. 605-610.
GIDDENS, Anthony. As consequências da Modernidade. São
Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 101-105.
JONAS, H. Técnica, medicina y ética.
Sobre la prática del principio de responsabilidad. Barcelona, Espanha: Paidós,
1997.
KUHSE,
H.; SINGER, P. Bioethics an anthology.
2 ª. ed. Reino Unido: Blackwell Publishing, 2008.
LORENZETTI,
R.L. Teoria da decisão judicial.
Fundamentos de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
_____________. La oferta como
apariencia
Y la aceptación basada en la confianza. Contratos de Servicios a
Los Consumidores, 1ª Edição, Santa Fe: Rubinzal Culzoni, 2005, p. 38.
LUHMANN, Niklas. Confianza. México: Universidad Iberoamericana, 1996, p.
14.
PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C.P. (Orgs.). Fundamentos
da bioética. São Paulo: Paulus, 1996.
SIQUEIRA,
J.E. A arte perdida de cuidar. Revista
Bioética, Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2002, 10(2), p. 89-106.
[1] “Cega, porque
limitando-se a compreender a doença apenas como pobres variáveis anatômicas
e/ou bioquímicas não enxerga o ser humano como ele verdadeiramente o é. Surda,
porque o paciente não sendo colhido como sujeito é impedido de manifestar-se
como pessoa.” (José Eduardo de SIQUEIRA, 2002, p. 96).
[2] A comunicação não verbal, explica o autor, atua em
diferentes frentes: comunicando atitudes e estados emocionais, por meio da
expressão corporal; apoiando e completando a comunicação verbal; controlando a
interação; obtendo o ‘feedback’.
[3] E, ainda, complementou esse raciocínio extremamente paternalista,
afirmando (2008, p. 608): “it is
frequently to a patient’s great advantage to know the truth in part, for it
offers him the reason for making a radical change in his mode of life,
sometimes a burdensome change.” Tradução
livre: “frequentemente é uma grande
vantagem para o paciente conhecer parcialmente a verdade, pois isso lhe oferece
uma razão para fazer uma mudança radical no seu modo de vida, às vezes, uma
mudança penosa.”
[4] Nesse sentido, ensinam Helga Kuhse e
Peter Singer (2006, p. 603) que “[...] to have a right to the truth is unmeaning.
We should rather say, a man has a right to his own truthfulness (veracitas), that is, to subjective truth in his own
person. For to have a right objectively to truth would mean that, as in meum and tuum generally, it depends on his will whether a given statement shall be true or
false, which would produce a singular logic.”
[5] Ensina Ricardo Luis Lorenzetti (2009, p. 305) que o
paradigma consequencialista “sustenta a
aplicação ilimitada dos direitos individuais (paradigma protetivo), somada a
uma profunda desconexão entre o público e o privado, gera uma tensão elevada,
que torna impossível a vida em comum. Seu princípio estruturante é a análise
das consequências públicas das ações privadas. [...] acentua os deveres, ou seja, os limites. [...] parte sempre das ações privadas e estuda o efeito da sua soma – ou
seja, os efeitos públicos das ações privadas. O jurista que adota essa visão
está disposto a utilizar critérios econômicos e sociológicos, mas para
fundamentar a coexistência social”.
[6] Tom L. BEAUCHAMP; James F. CHILDRESS,
2009, p. 291.
[7] Léo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine (1996, p.
163) arguem que “quanto menos o médico dá
de si e de seu tempo, mais medicamentos prescreve e mais exames de laboratórios
pede. É a medicina farmacologizada e instrumentalizada”, prática que predomina em muitos países,
atualmente impulsionada pelas forças de mercado e pelo poder dos grandes
laboratórios farmacêuticos e que leva a uma nova forma de desumanização da
Medicina.
Nenhum comentário:
Postar um comentário