Por Marina Pranke Cioato e Lucimar de Paula
Nos
últimos cinco anos alguns projetos caminham no legislativo brasileiro com o
propósito de liberar a caça no país. Entre eles é possível mencionar o PL
6.268/2016, o PL 5.544/2020 e o PL 4.829/2020, que sob diferentes argumentos
buscam encontrar justificativa para autorizar a prática, seja como forma de
esporte, seja com a suposta pretensão de controle populacional de espécies
exóticas.
Atualmente
a caça é proibida no Brasil em conformidade com a Lei 5.197/67 (Lei de Proteção
a Fauna), prevendo como únicas exceções àquelas voltadas a subsistência e a
prática científica (inegavelmente questionadas por movimentos ambientalistas e
animalistas). Abrindo mão de um panorama sobre a complexa relação entre o
hábito de caça e justificativas como lazer, descumprimento legal e até falta de
conhecimento, analisemos as consequências da liberação da caça a partir da
ótica do Direito Animal.
O
Direito Animal, ciência jurídica ainda recente quando comparada a outras,
surgiu tendo por um de seus principais objetivos o reconhecimento dos direitos
animais. A grande diferença em relação ao Direito Ambiental é que dentro do
Direito Animal cada indivíduo importa por si só, pela sua própria vida e por
sua capacidade de sentir, ou mais comumente conhecida, pela sua senciência. E,
não mais como simples porção de um ecossistema interdependente, como no Direito
Ambiental.
Reconhecer
direitos aos animais enquanto indivíduos, implicou uma série de avanços
jurídicos. Podemos lembrar da recém aprovada Lei Sanção (Lei 14.064/2020) que
aumentou a pena para quem maltrata cães e gatos para 2 a 5 anos de prisão. Há
que se advertir que a Constituição do Brasil não é especista quando determina
ao Poder Público coibir práticas de crueldade contra os animais. Portanto, seja
animal silvestre ou doméstico, assilvestrados ou domesticados, nativos ou
exóticos, sempre haverá um tipo penal a condenar a prática de maus tratos.
Admitir
que a prática da caça pudesse ser retomada é no mínimo um retrocesso a todo
esse reconhecimento, o que afronta o princípio da proibição do retrocesso. Isto
porque, na ótica do Direito Animal, não importa se os animais são nativos ou
exóticos, todos eles são seres sencientes e, portanto, merecem ter sua
integridade física e psíquica preservada e respeitada.
Para
além desse argumento, no Direito se reconhece o princípio da vedação ao
retrocesso. Se estamos caminhando para uma justiça mais atenta a preocupações com
os animais, que argumentos sustentariam uma violência gratuita ou meramente por
diversão em face destes seres? Por esta razão observemos também os reflexos de
uma mudança cultural na relação homem-natureza. Precisamos refinar a cultura
brasileira!
Especialmente
a partir de 2020, com o aumento incontrolável de casos da Covid-19, a
sociedade, de maneira global, passou a rever sua postura no que diz respeito ao
meio ambiente. Já se sabe que a pandemia teve origem no desequilibro desta
relação e que outros reflexos podem colocar a vida do planeta em risco se uma
revisão do comportamento humano não for feita de imediato. Abordar a questão da
caça não é meramente tentar legalizar uma prática que já acontece de forma
ilegal. É legitimar também a extinção do animal humano.
Para
aqueles que utilizam do argumento de que a caça acontece mesmo já sendo
proibida, analisemos algumas consequências disso. Hoje, grande volume dos
indivíduos que são caçados tem como destino o tráfico de animais – terceira
atividade ilícita mais lucrativa do mundo, perdendo apenas para o tráfico de
drogas e armas. Segundo o Relatório da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais
Silvestres - Renctas, para que um animal possa ser capturado e
comerciado, pelo menos outros nove precisaram morrer, vítimas da violência da
prática.
Ainda,
há a justificativa econômica. Há quem defenda que este valor (do comércio
ilegal) serve de subsistência a populações socialmente desassistidas. Em sua
obra “Joias da Floresta: antropologia do tráfico de animais”, Felipe Velden
traz o exemplo do comércio da araracanga (Ara
macao). Comprada por US$ 100 na América do Sul, a ave chega a valer até US$
6 mil na Europa. No entanto, esses 100 dólares custeiam o responsável pela caça
(que recebe o menor valor), o intermediário (responsável por todo o transporte)
e o vendedor final (que fica com o maior montante deste valor). Ou seja, é
insustentável acreditar que se paga pelo sustento de pessoas menos favorecidas.
Por
fim, vale considerar que todo esse comércio faz com que países gastem
verdadeiras fortunas em combate a atividades ilícitas e defesa de suas
fronteiras. Sobretudo países subdesenvolvidos, que ainda mantém a maior
quantidade de biodiversidade intacta, e que poderiam reverter estes valores
para saúde, educação e políticas públicas de desenvolvimento sustentável.
A
liberação da caça de animais no Brasil é apenas mais uma medida autoritária de
uma minoria preocupada em atender interesses exclusivamente pessoais. Por que
não se fala em medidas de educação animal, de criação de locais apropriados
para receber animais vítimas do tráfico ilegal, do pagamento público para apoio
a gestão de Unidades de Conservação que possam permitir um convívio harmonioso
entre o homem e animais silvestres? Porque não é do interesse de alguns dos representantes
públicos que buscam um retrocesso de direitos aos animais.
Não é
possível, nem mesmo juridicamente, defender que a caça seja liberada no Brasil.
É preciso que os paradigmas que sustentam os argumentos dos egoístas defensores
da prática sejam derrubados e isso se faz por meio de educação. O Direito
Animal é uma das formas mais atuais de se reconhecer direitos a estes
indivíduos e a sua existência deve ser o meio jurídico a combater tamanho
retrocesso.
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