Por Nicoly Schuster.
Mais uma vez, integrantes dos grupos
de pesquisa do UNICURITIBA, em conjunto com o Instituto Mais Cidadania[i]
participaram na elaboração de um parecer na qualidade de amicus curiae perante o Supremo Tribunal Federal. Os pesquisadores
se dedicaram a estudar e elaborar teses sobre a ADPF[ii]
442, que trata da descriminalização do aborto até a 12ª semana.
A arguição foi apresentada pelo
Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o qual sustentou que a Constituição de
88 não poderia recepcionar os artigos 124 e 126 do Código Penal, que tipificam
a conduta do aborto voluntário, por configurar afronta aos direitos de
liberdade, dignidade da pessoa humana, à cidadania e à não discriminação das
mulheres. O partido, ainda, requereu tutela de urgência para que fossem
suspensas as prisões em flagrante, os inquéritos policiais, o andamento de
ações penais e os efeitos de decisões judiciais que tenham aplicado os
referidos artigos do Código Penal. Entretanto, o pedido foi indeferido pela
ministra relatora Rosa Weber.
Sendo o tema aborto tão relevante social, política e culturalmente, quanto mais subsídio para basear suas decisões os ministros tiverem, mais bem informado serão seus votos. A figura do amicus curiae possui, então, papel relevante para contribuir com esses julgamentos, na medida em que permite que estudos aprofundados sobre um tema integrem a ação constitucional. Na decisão que convocou entidades e organizações para audiência pública, a Ministra Rosa Weber[iii] exprimiu que
À vista do quadro normativo desenhado, verifica-se que a questão da interrupção voluntária da gravidez nas 12 (doze) primeiras semanas envolve o espaço de conformação e incidência de diferentes valores públicos e direitos fundamentais. 13. A discussão que ora se coloca para apreciação e deliberação deste Supremo Tribunal Federal, com efeito, é um dos temas jurídicos mais sensíveis e delicado, enquanto envolve razões de ordem ética, moral, religiosa, saúde pública e tutela de direitos fundamentais individuais. A experiência jurisdicional comparada demonstra essa realidade. Assim, a complexidade da controvérsia constitucional, bem como o papel de construtor da razão pública que legitima a atuação da jurisdição constitucional na tutela de direitos fundamentais, justifica a convocação de audiência pública, como técnica processual necessária, a teor do art. 6º, §1º, da Lei n. 9.882/99, e dos arts. 13, XVII, e 154, III, parágrafo único, ambos do RISTF.
Quando se trata do tema, é inevitável
mencionar o caso Roe x Wade, no qual
a Supreme Court analisou e
estabeleceu parâmetros a nível federal sobre o aborto. Em 1973, a Corte Burger
analisou a constitucionalidade de uma lei do estado do Texas — que proibia a
conduta em qualquer caso exceto quando houvesse risco de vida para a gestante —
e decidiu que o aborto seria permitido até o primeiro trimestre[iv]
da gestação.
No Brasil, a primeira grande discussão sobre a matéria foi trazida pela propositura da ADPF 54, a qual estabeleceu que a mulher poderia escolher se vai ou não abortar, caso o feto seja diagnosticado com anencefalia. No julgamento, é importante ressaltar, não foi analisada a descriminalização do aborto, mas sim a incompatibilidade da criminalização em caso de feto anencéfalo. Portanto, aqui, não foi examinado o confronto do direito à vida com a liberdade de escolha da mulher, uma vez que não haveria vida para ser tutelada. Nesse sentido, o voto do ministro relator Marco Aurélio[v]
Conforme demonstrado, o feto anencéfalo não tem potencialidade de vida. Trata-se, na expressão adotada pelo Conselho Federal de Medicina e por abalizados especialistas, de um natimorto cerebral. Por ser absolutamente inviável, o anencéfalo não tem a expectativa nem é ou será titular do direito à vida, motivo pelo qual aludi, no início do voto, a um conflito apenas aparente entre direitos fundamentais. Em rigor, no outro lado da balança, em contraposição aos direitos da mulher, não se encontra o direito à vida ou à dignidade humana de quem está por vir, justamente porque não há ninguém por vir, não há viabilidade de vida. Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível.
O atual ordenamento jurídico
brasileiro prevê que o aborto pode ser realizado nas seguintes hipóteses:
gravidez resultante de estupro; quando não há outra forma de salvar a vida da
gestante ou em caso de feto diagnosticado com anencefalia. Além dessas, existe
a possibilidade do aborto eugênico, que se configura quando há pouca chance de
sobrevida do feto devido a anomalias congênitas. Essa última não é prevista
pela lei, mas é geralmente aceita pela jurisprudência, conforme se vê em algumas
decisões judiciais que já têm permitido o procedimento, por exemplo, em casos
de diagnóstico do feto com a síndrome de Edwards.
Mesmo nessas situações, nas quais o
aborto é um direito, as mulheres enfrentam dificuldades para realizar o
procedimento devido a fatores como a recusa dos médicos, a falta de informação
sobre o direito que possuem e a estigmatização social que acompanha à prática
pelo fato de ser, pela regra geral, um crime. Isso pode ser notado, por
exemplo, no caso da criança de 10 (dez) anos violentada pelo tio desde os 6
(seis) anos de idade, que engravidou e teve que ser transferida para outro
estado para realizar o aborto, pois a ministra Damares Alves expos o caso em
suas redes sociais, acarretando numa comoção conservadora contra a realização
do procedimento, obrigando a menina a eixar a sua cidade[vi].
A questão da descriminalização voltou
a ser objeto de debate a partir da propositura da ADPF 442, exigindo que o
Tribunal Constitucional analise, finalmente, se é possível que a mulher escolha
se vai ou não realizar aborto, até a décima segunda semana da gestação. Para
compreender um tema tão complexo e sensível é necessário ir além dos aspectos
jurídicos e se debruçar sobre teorias da justiça e da argumentação, sobre o
percurso da aquisição de direitos feministas, sobre a ótica médica relacionada
ao procedimento, entre outros aspectos sociais, culturais e políticos. Foi com
esse olhar multidisciplinar, abordando diversas perspectivas sobre o tema, que
foi desenvolvido o projeto de trabalho pelos pesquisadores.
Três integrantes dos grupos de pesquisa aceitaram compartilhar como foi a experiência de elaborar uma peça a ser submetida ao STF, em um dos julgamentos mais importantes já apresentados diante da suprema corte brasileira. Kamylla de Paula Padilha[vii], advogada e egressa da Unicuritiba, contou que se sente mais apta a seguir na carreira acadêmica e que definiu sua linha de pesquisa a partir da elaboração dos estudos para o parecer. Além disso, quando perguntada sobre a possibilidade de aplicar no parecer o conteúdo ministrado em aulas e as teorias estudadas nos encontros do grupo de pesquisa, ela disse que
“Quando
estudamos na faculdade as possibilidades de admissão da ADPF, quem são os
legitimados, quais são os requisitos etc., parece algo bastante distante, mas
quando podemos estudar e fazer parte de um caso específico tudo fica mais
claro.
Com relação ao grupo de pesquisa estou no segundo ano, e estudo o fenômeno de judicialização de casos que envolvem o Direito de minorias no Brasil, o assunto é bastante complexo e traz à tona uma série de problemas. Dessa forma, o parecer foi uma oportunidade de ver a realidade que líamos nos textos durantes os encontros.”
A acadêmica Nicolly Jacob Castanha[viii], também ressaltou que foi possível aplicar, em um caso prático, o conteúdo que aprendeu nas aulas sobre controle de constitucionalidade. Segundo ela:
“Acredito que essa seja a verdadeira magia de participar da confecção de um parecer como esse. É preciso, por exemplo, lembrar das saudosas aulas de direito Constitucional da professora Tanya e do Professor Luiz Gustavo, para entender, por exemplo, o porquê, é cabível, no caso em questão, a ADPF e não as demais ações em controle concentrado, ou, para compreender quais são os eventuais direitos fundamentais que podem estar sendo violados com a criminalização, ou ainda para se questionar qual é, verdadeiramente, o papel da Corte Constitucional.”
A acadêmica Bruna Maria Domingues Braga[ix], destacou que participar na elaboração do parecer permitiu a ela ampliar os estudos e a forma com a qual olha para um caso jurídico. Perguntada sobre como participar da confecção desses pareceres poderia refletir na sua vida acadêmica e profissional, respondeu que
“Com toda certeza eu acho que isso influencia na vida acadêmica e profissional, porque, primeiramente, antes de ser um acadêmico, nós somos indivíduos, nós somos cidadãos e estamos incluídos em uma sociedade. Então, a partir do momento que a gente tem esse tipo de oportunidade acadêmica, conseguimos ampliar primeiramente os nossos estudos, a forma com a qual estudamos e vemos um caso. Isso vai refletir no profissional pelo fato de que a gente vai ter um olhar não somente jurídico, que é esperado de um jurista, mas também um olhar da sociedade, porque para além de juristas nós sempre estaremos tutelando o direito de alguém.”
Entretanto, a complexidade do tema se
mostrou um desafio importante, já que foi preciso esmiuçar, por exemplo,
conceitos de teorias da justiça e a jurisprudência do STF, bem como analisar ordenamentos
jurídicos estrangeiros. Conforme apontado por Kamylla[x],
foi desafiante compreender os contextos sociais e políticos dos diferentes
países e sua legislação, assim como interpretar decisões judiciais
estrangeiras, já que existiam poucas fontes oficiais disponíveis para pesquisa.
Já a acadêmica Bruna[xi],
asseverou que foi desafiador deixar as opiniões pessoais de lado e escrever um
parecer técnico e imparcial, e apontou para a grande responsabilidade de atuar
em um julgamento cuja decisão vai impactar de maneira tão significativa a vida
de todas as pessoas. A acadêmica Nicolly, que também é monitora da disciplina
de Direito Constitucional III, foi responsável por auxiliar os professores na
organização final do parecer e apontou para a complexidade de compilar, em um
texto único, os escritos de mais de dez pesquisadores[xii].
Apesar disso, a monitora destacou que todos os textos foram produzidos com
muito comprometimento e, por isso, o resultado do parecer foi de
excelência.
A oportunidade de elaborar textos
para serem apresentados perante um dos tribunais mais importantes do país é
primordial para o desenvolvimento acadêmico e profissional dos estudantes, além
de permitir uma visão de mundo ampla e que vai além da mera interpretação e aplicação
das leis. Permite que seja aprimorada a escrita e desenvolvida a pesquisa, a
partir do aprofundamento sobre temas importantes que não são tratados em
profundidade nas aulas, além de ser possível colocar a teoria em prática para
resolver questões em casos reais, sobre assuntos de grande relevância social.
Para saber mais sobre outras ocasiões nas quais os grupos de pesquisa participaram em julgamentos perante o Supremo Tribunal Federal e como se dá a escolha dos alunos para participar da elaboração dos pareceres, acesse aqui.
[i]
Presidido pelo professor Roosevelt Arraes e dirigido pelo professor Luiz
Gustavo de Andrade, ambos integrantes do corpo docente do UNICURITIBA.
[ii]
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: espécie de ação de controle
de constitucionalidade de caráter residual - própria para as hipóteses nas
quais não cabe outro tipo de ação de controle - cabível contra atos do poder
público que infrinjam preceitos fundamentais.
[iii]
STF. Decisão da ministra Rosa Weber. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/AudnciaPblicaADPF442.pdf>.
Acesso em 1º de outubro de 2020.
[iv] Equivale, mais ou menos, à 24ª
semana de gestação.
[v]
STF. Voto do ministro relator Marco Aurélio. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf54.pdf>
Acesso em: 1º de outubro de 2020.
[vi]
BRASIL ELPAIS. Menina de 10 anos violentada faz aborto legal, sob alarde de
conservadores à porta do hospital. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-16/menina-de-10-anos-violentada-fara-aborto-legal-sob-alarde-de-conservadores-a-porta-do-hospital.html>.
Acesso em: 1º de outubro de 2020.
[vii]
Advogada e egressa do UNICURITIBA.
[viii]
Acadêmica do decimo período do curso de Direito.
[ix]
Acadêmica do sexto período do curso de Direito.
[x] Em
entrevista ao UNICURITIBA Fala Direito.
[xi]
Em entrevista ao UNICURITIBA Fala Direito.
[xii]
Em entrevista ao UNICURITIBA Fala Direito.